Preletor: Valdir Steuernagel – Libertação e graça são temas de artigo
Normalmente, em contextos menos urbanos, a vida vai se acalmando no final do dia. Quando o sol desaparece e os últimos raios se confundem com as luzes fracas e escassas, as crianças ainda se arriscam a brincar por ali. E aos poucos vão chegando mais perto de casa, até que, quando vem a escuridão, procuram o aconchego e a proteção do lar.
Porém, em um lugarejo a 20 quilômetros de Gulu, no norte de Uganda, parece que é o contrário. Quando o sol ainda está longe de se pôr, uma estranha agitação toma conta do lugar. As mães, nervosas, chamam pelos filhos e as próprias crianças carregam no olhar uma preocupação incomum para sua idade. Pegam uma coisa aqui e outra ali e logo estão prontas para partir. É melhor ir logo, enquanto ainda é claro. E assim acontece a cada final de tarde.
Umas são maiores — devem ter uns 14 anos. Outras, de tão pequenas, parecem ainda não ter 8. E lá vão elas, rumo a Gulu. Caminham rápido, juntas, sob estritas ordens de não se separarem até chegar ao lugar onde vão dormir. Na manhã seguinte, farão o caminho de volta.
Por estranho que pareça, vão dormir longe de casa para dormir em segurança.
A história é longa e trágica! Desde 1987 existe, no norte de Uganda, um grupo de rebeldes que se intitulam “Exército de Resistência do Senhor”. Iniciado como um movimento para derrubar o governo de Uganda, eles se transformaram num grupo rebelde que já provocou o deslocamento de mais de 2 milhões de pessoas e assassinou mais de 12 mil. Alimentam suas fileiras raptando pessoas, o que pode incluir vilas inteiras. Porém, sua maior especialidade é o rapto de crianças — mais de 30 mil já foram raptadas, algumas com meros oito anos de idade. Elas são transformadas em guerreiras pela força, além de terem de carregar armamento nas constantes andanças do grupo; e as meninas são transformadas em escravas sexuais.
Graça foi uma delas. Por vários miseráveis anos ela viveu com o grupo, forçada a roubar, lutar e matar. Foi dada como “noiva menina” a um dos homens daquele exército e, como tal, duramente tratada. Até que não aguentou mais. Um dia, numa batalha, apavorada demais para tentar fugir, ela fingiu-se de morta e foi achada por um soldado do exército de Uganda, encontrando assim a liberdade.
Nos outros artigos desta série, fomos lembrados que Jesus nos chamou para expulsar os demônios. Ele próprio fazia isso, conduzindo as pessoas à liberdade. Mas a realidade demoníaca não se manifesta apenas de forma individual; é também coletiva e até estrutural. O “Exército de Resistência do Senhor” é um exemplo claro disso. É um exército que rapta, mata, oprime e explora. Acusado dos mais bárbaros crimes da humanidade, é um exército com marcas demoníacas que está a serviço da morte e produz todo tipo de desconstrução humana, espelhando de forma muito evidente a realidade do mal. O mal tem muitas outras expressões, algumas bem mais sutis. Porém, o padrão é sempre o mesmo: ele explora, oprime e mata. Só sabe fazer isso, mesmo que seja a cores e ao som de muita música e dança. No final do dia, porém, é sempre demoníaco. Vivemos num mundo marcado pelo mal e por sua presença nas mais diferentes expressões da vida humana. Ele se manifesta de forma pessoal e coletiva, particular e institucional. Negá-lo é querer ser cego à realidade.
O mal, no entanto, não tem a última palavra — seus dias estão contados. Jesus está presente entre nós e o seu Espírito nos capacita a anunciar a palavra libertadora e a vivenciar a realidade de um amor que caminha para a construção e para a afirmação da humanidade e da vida em comunidade. Jesus deixou isso muito claro em seu ministério e na mensagem que nos legou. Ele diz com muita firmeza e clareza que veio “para que tenham vida, e a tenham plenamente” (Jo 10.10). Sua chegada é sinal de esperança e sua presença é sinal de libertação. Onde há opressão, ele produz liberdade. A exploração é substituída pelo amor e a própria morte é vencida pela vida.
Foi o que aconteceu com a jovem Graça. O dia da sua libertação chegou e ela foi encaminhada para o Centro de Repatriação para soldados infantis que a Visão Mundial mantém em Gulu. Lá ela encontrou amizades, apoio comunitário, aconselhamento e treinamento profissional. Mesmo ainda lutando com terríveis memórias, recentemente foi escolhida como “líder de turma”, responsável por instalar os recém-chegados ao Centro. “Agora me sinto segura”, ela diz com um sorriso. “Sinto que posso ser alguém na vida, quem sabe até me tornar presidente de Uganda.”
A verdade é que, para ser alguém, Graça não precisa ser presidente do seu país. Ela já é alguém aos olhos de Deus e, por meio de representantes do seu povo, descobriu que é amada por Deus e foi chamada por ele para estender as mãos a outros que também precisam se encontrar com os braços do Pai — braços que amparam, consolam, purificam e impulsionam para o futuro.
Foi assim com ela e conosco, que também dependemos da graça de Deus para viver. Graças a Deus pela Graça e por sua graça!
• Valdir Steuernagel é pastor luterano e trabalha com a Visão Mundial Internacional e com o Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba, PR. É autor de, entre outros.
Data: 30/9/2010 08:56:50