Fonte Estadao.com
Células-tronco são cantadas em verso e prosa
por Renato Terra
Eram 11h15 do último sábado de janeiro quando a atriz Larissa Câmara irrompeu no palco com uma cintilante peruca loira, despenteada à la Ana Maria Braga. Afinou as cordas vocais num timbre à laMarília Gabriela e saudou o público: “Bom-dia! Estamos iniciando mais um programa Comece o Dia Bem! Vamos fazer um exercício: abra os olhos, encha o peito de ar, respire. Ah, respire! Sorria! Hoje vamos mostrar uma grande revolução na pesquisa científica: as células-tronco. Uma promessa de esperança ou um marco na medicina?”
Enquanto a voz loira ressoava pelo auditório, Catarina Chagas suspirava aliviada: “Ufa, encheu.” Catarina é uma das coordenadoras do projeto Sarau Científico, em fase de implantação no Museu da Vida, instituição que fica dentro da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A Fiocruz, como é mais conhecida, é um oásis científico localizado no início da avenida Brasil, no bairro de Manguinhos. O local é cercado por favelas e a população sofre tanto com o banditismo que a região ganhou o apelido de Faixa de Gaza. A apreensão de Catarina deveu-se ao fracasso de quórum da edição anterior, cuja data coincidiu com a onda de ataques pela cidade que culminou com a tomada do Complexo do Alemão pelo Exército, em dezembro passado. Dessa vez, numa manhã em que as únicas chamas na Zona Norte do Rio vinham do alucinante sol de verão, cerca de 100 espectadores puderam chegar com calma e tomar quase todos os assentos do auditório.
Um cartaz pendurado na porta da Fiocruz apresentava o “Sarau científico: as células-tronco em cena” como “um debate quente, temperado com encenações, músicas, poesia e muito humor” e definia o público-alvo: jovens a partir de 15 anos. E foi nesse diapasão que o programa Comece o Dia Bem! apresentou o quadro seguinte: a “Valsa das células-tronco”.
Num ambiente de baile de debutantes, atores dançavam no fundo do palco ao som da valsa de A Bela e a Fera, enquanto a apresentadora explicava que “as células-tronco podem se transformar em outros tipos de célula” e também “podem se multiplicar gerando células idênticas à original”.
Após sequências em que heróis feitos de vasos sanguíneos, neurônios e células ósseas encenavam acidentes para demonstrar o poder regenerador das supercélulas, chegou a vez de testar a concentração da plateia. Com uma pitada de apreensão, a apresentadora anunciou: “Hoje o programa Comece o Dia Bem! tem o prazer de convidar o biólogo Daniel Veloso Cadilhe, do Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias, sediado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para responder às perguntas da plateia.”
O que poderia ser uma brecha para os insones cerrarem os olhinhos ganhou ritmo ágil: as primeiras perguntas foram lidas por monitores e as respostas de Daniel foram claras e certeiras. Nas perguntas vindas do público – quando o temido louco de palestra sempre está à espreita –, surgiram questões gerais como: “A nível de Brasil, em que pé estamos? E a nível de queimaduras?” Quando a pergunta era ininteligível ou caminhava rumo ao infinito, os atores intervinham rapidamente.
O projeto Sarau Científico é financiado pela fundação britânica Wellcome Trust. A cada edição, aborda um tema diferente, sempre polêmico. A primeira tratou dos transgênicos, e a seguinte abordou o uso dos animais em pesquisas científicas. Serão cinco edições ao todo. A entrada é gratuita. O projeto fica sob responsabilidade da diretora do Museu da Vida, Luisa Massarani. “Queremos trazer para cá os jovens de baixa renda que moram no entorno. É um público mais difícil de conquistar, pois tem outros interesses. Por isso, optamos por uma linguagem mais coloquial com música, teatro e dança”, explica Luisa, que levou a mãe e a irmã ao sarau.
Não à toa, a produção julgou conveniente colocar um funk na sequência do quadro com perguntas ao biólogo Daniel Cadilhe. Glamorosa, a Lady Biossegurança subiu ao palco para sacudir a massa e, de quebra, explicar os percalços pelos quais a Lei de Biossegurança passou até atingir o formato atual: “Minha história é polêmica, vou te dizer, criança/ Causei na religião, política e até na segurança/ Vou mandar a real, vou dizer qual é o ponto/ Regulei a pesquisa com célula-tronco”, começava. Depois de usar “aperte o cinto” para dizer que foi aprovada “em 2005” e citar “sua mãe e sua tia” para ressaltar que a aprovação foi apenas “para fim de terapia”, emergiu um refrão – cantado em coro pelos atores –, resumindo o embate ideológico entre as correntes que mais divergiram sobre a regulamentação das pesquisas com células-tronco embrionárias: “Ato aáto/ Será que é assassinato?/ Ito, iíto/ Vai rolar conflito/ Eja, eêja/ Cientistas contra a Igreja!”
Além da discussão religiosa, outros pontos polêmicos foram levantados. Um vídeo no telão mostrou um trecho do Globo Repórter que contava a história de Daniela, uma jovem tetraplégica que desembolsou 40 mil dólares em um tratamento com células-tronco na China. Dois anos depois, Daniela não apresentou melhoras significativas. O vídeo produziu questionamentos na plateia e o sempre alerta Daniel Cadilhe voltou aos holofotes para responder a mais algumas questões. Deixou claro que o tratamento com células-tronco ainda é experimental e, portanto, seria antiético cobrar dos pacientes.
Para o grand finale, o grupo É o Tchun, formado pelos atores, tentou colocar a plateia de pé para dançar uma coreografia. “Oi, pega a célula/ Bota a célula/ Injeta a célula/ Para experimentar/ Oh lalá.” A adesão não foi das maiores. Nem mesmo pedindo ajuda dos monitores, que subiram ao palco, foi possível vencer a timidez do público. Apenas oito pessoas se levantaram e duas arriscaram a coreografia.
Quem trabalha com divulgação científica tem que estar preparado para encontrar maneiras mais empíricas de medir a satisfação de seu público. Na saída, foi distribuído um formulário para cada espectador avaliar o que viu e sugerir novidades para os próximos saraus. Como nem tudo deve ficar barato, uma menina de 14 anos fez questão de registrar sua indignação no formulário com “a sacanagem que fizeram com a Daniela, ao cobrar por uma coisa que não deu certo”.
O campo livre no formulário – onde o espectador poderia sugerir temas para os próximos saraus – mostrou como a discussão científica é rica. Abrigou desde temas correntes como “reciclagem”, “evolução” e “eutanásia”, como também “efeitos das radiações ionizantes”, “uso de ervas para curar doenças”, “ciência forense” e “polvo” (isso mesmo: “polvo”). Catarina terá um imenso leque de possibilidades para os próximos saraus. Quem sabe a dança do tubo de ensaio ou o reggae das ervas medicinais?