Sérgio Rodrigues
Sobre Palavras
Nossa língua escrita e falada numa abordagem irreverente
“Minha dúvida diz respeito à origem da palavra ‘religião’, que obviamente procede do latim ‘religio’. Porém, uma visão muito difundida (e que me parece falsa) diz que ‘religio’ se origina do mesmo latim, no verbo ‘religare’, tendo sentido de ‘religar um homem a uma divindade’. Confere?” (Arthur Ribeiro)
No momento em que um pastor evangélico adentra o ministério de Dilma Rousseff, aparentemente com a missão de multiplicar os peixes na eleição para a prefeitura de São Paulo, a consulta de Ribeiro vem a calhar. Como ele antecipa parcialmente, a origem da palavra religião é palco de uma luta surda que chega perto de se perder no tempo.
Neste caso, em vez de Deus e o diabo, digladiam-se dois verbos latinos. Ninguém discute que religião (palavra existente em português desde o século 13) seja um termo derivado do latimreligio, religionis – “culto, prática religiosa, cerimônia, lei divina, santidade”. A questão é: de qual verbo esse substantivo é a forma nominal, relegere ou religare?
A visão mais tradicional e respeitável, pela qual me inclino, aposta na primeira opção. Relegere, isto é, “reler, revisitar, retomar o que estava largado”, pode ser visto neste contexto como o ato de reler e interpretar incessantemente os textos de doutrina religiosa ou, quem sabe, como a retomada de uma dimensão (espiritual) da qual a vida terrena tende a afastar os homens. Essa tese era defendida na antiguidade por Cícero e foi compartilhada no século 19 pelo latinista português Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva, autor do influente dicionário que leva seu nome.
No entanto, já na antiguidade tardia – e entre muitos autores modernos, como o contestado etimologista brasileiro Silveira Bueno – ganhou popularidade a tese, provavelmente romântica, que liga o vocábulo religião ao verbo religare, “religar, atar, apertar, ligar bem”. A ideia de que caberia à religião atar os laços que unem a humanidade à esfera divina tem lá sua força poética, o que talvez explique o sucesso desta versão. Diga-se que em autores clássicos, porém, o verboreligare é estritamente prosaico, empregado com o sentido de prender os cabelos ou enfeixar a lenha.
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