Existem mesmo mitos evangélicos? Afinal, um povo que prega liberdade em Cristo, busca viver a verdade e brada “EU SOU LIVRE” não deveria alimentar mitos.
Antes, uma breve definição do que seja mito. O mito (do grego μυθóς, lê-se “mithós”) é uma interpretação simbólica de fatos, geralmente com fundo cultural. O mito procura explicar a realidade e parece lógico, mas sua argumentação é falsa, seu fundamento é um sofisma.
O mito pode ser vivenciado através de ritos. O rito é o modo de se pôr em ação o mito na vida da pessoa ou comunidade, em cerimônias, danças, orações e sacrifícios.
Não confunda com superstição. Superstição liga-se a misticismo. É a crença sobre relações de causa e efeito que são contrárias à racionalidade. Por exemplo, no Brasil existe a superstição de que quebrar um espelho causa sete anos de azar e o mito de que comer manga com leite faz mal; a superstição de bater três vezes na madeira para evitar um mal e o mito de que se deve evitar tomar banho depois de comer. Portanto, não troque os conceitos.
Às vezes, as correntes que nos impedem de sermos livres são mais mentais do que físicas ou mesmo espirituais. Assim, podemos estar amarrados a “nada”.
Então, vejamos alguns (somente alguns) mitos evangélicos:
a) A ORAÇÃO DE MADRUGADA É MAIS EFICAZ.
Origem provável: (Salmo 88:13) – “Eu, porém, Senhor, tenho clamado a ti, e de madrugada te esperará a minha oração.”e (Jó 8:5) –“Mas, se tu de madrugada buscares a Deus, e ao Todo-Poderoso pedires misericórdia…”
O livro de Jó e os Salmos são poéticos, e por isso guardam bastante linguagem figurada. No imaginário oriental, madrugada era sinônimo de tribulação e angústia. A escuridão lembra ameaça e grande perigo. Por isso há tantas referências às madrugadas no Antigo Testamento. O salmista queria apenas dizer: na angústia te esperará a minha oração. “Madrugada” (Heb. Transl. Shachar), que também se traduz como “cedo, pela manhã”, também sugere que se deve buscar ao Senhor com prioridade.
Associa-se a isso a nefasta “teologia do sacrifício”, que sugere que práticas ascéticas são agradáveis a Deus. Programar orações às 2h da manhã, renunciando a um sono reparador, dentro dessa perspectiva faz muito sentido.
De forma geral, talvez seja melhor aproveitar a noite para o descanso do corpo e da mente, para o dia que virá cheio de desafios e oportunidades. O mito do “quanto mais sofrido, mais Deus se agrada” deve dar lugar às orações da manhã, da tarde ou da noite, que têm o mesmo alcance daquelas feitas na madrugada.
(Salmos 127:2) –“Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados o sono.”
b) ORAR EM SILÊNCIO É MELHOR PORQUE O DIABO NÃO OUVE.
Origem provável: (Lucas 5:22) –“Jesus, conhecendo os seus pensamentos, respondeu: Que arrazoais em vossos corações?”
A Bíblia é econômica nesse assunto, por isso o imaginário religioso cunhou a ideia de que somente alguém onisciente teria condições de saber o que pensamos. Logo, nem anjos, nem demônios, nem ninguém teria essa prerrogativa, além de Deus. De Lucas 5:22 (acima) talvez possamos extrair que somente Deus possa saber o que pensamos, mas é provável que o astuto diabo consiga mais vantagens do que imaginamos nessa área (Veja II Coríntios 2:10-11). Não podemos ter plena certeza disso.
De qualquer forma, esse mito parece ter nascido do medo do diabo, e quando se tem medo do diabo e do que ele pode fazer com os filhos de Deus, uma das situações é verdadeira: (1) superestima da atuação do maligno, (2) desconfiança no cuidado de Deus e/ou (2) falta de conhecimento da Palavra de Deus. Quem assim pensa precisa dar uma boa olhada em I João.
Pessoalmente penso que pouco importa se o diabo sabe ou não o que pensamos. Orar em silêncio ou em brados não faz diferença alguma, porque o diabo ouvindo ou não, nada poderá contra os intentos de Deus para a Sua Igreja.
(I João 4:4) –“Filhinhos … maior é o que está em vós do que o que está no mundo.”
(I João 5:18) – “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus … o maligno não lhe toca.”
(I João 3:8b) –“Para isto o Filho de Deus se manifestou: para desfazer as obras do diabo.”
(Veja também Is43:13; 2Ts 3:3; Ef 6:16 e 1Jo 5:19).
c) A ORAÇÃO DE JOELHOS É MAIS PODEROSA.
Origem provável: (Lucas 22:41) – “E [Jesus] apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joelhos, orava.” e (Efésios 3:14) – “Por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.” (Veja também Ed 9:5 e Dn 6:10).
Dobrar os joelhos para falar com alguém é sinal de profunda reverência. Ainda hoje pessoas se ajoelhamperante osreis e o papa.Em alguns contextos, ajoelhar-se é sinal de adoração. Não é sem motivo, portanto, o gesto pessoal de dobrar-se perante o Deus Altíssimo.
Mas em torno desse costume criou-se o mito de que a oração feita de joelhos surte melhor efeito. É comum que a Igreja faça petições a Deus de pé quando o assunto é simples, e quando a coisa é intricada pede-se a posição de joelhos.
Biblicamente, o alcance da oração independe da posição de quem ora, depende apenas de fé. As orações mais célebres que Jesus e outros fizeram não foram de joelhos. Veja 2Rs 20:2; Jn 2:1; Lc 3:21; Lc 18:13;Jo 17:1; Jo 11:43.
d) O JEJUM SANTIFICA E ACELERA A RESPOSTA DE DEUS.
Origem provável: (Neemias 1:4) –“E sucedeu que, ouvindo eu estas palavras, assentei-me e chorei, e lamentei por alguns dias; e estive jejuando e orando perante o Deus dos céus.” e (Atos 13:3) –“Então, jejuando e orando, e pondo sobre eles as mãos, os despediram.”
A abstinência alimentar com fins religiosos tem origem no Dia da Expiação, que era uma festa anual dos hebreus em que se fazia a purificação de todos os pecados do povo (Levítico 16.29-30 e 23.26-29). Nesse dia, era prescrito afligir a alma, com a negação de prazeres ao corpo, incluindo o alimento. No Antigo Testamento, o jejum sempre esteve ligado à tristeza e ao luto, e nunca à santificação ou busca por poder. Bem mais tarde, os israelitas passaram a fazer jejuns interesseiros, no que foram repreendidos por Deus, através dos profetas Isaías e Zacarias. O jejum com a finalidade de “matar a carne” surge a partir da influência grega do dualismo de Platão, que sustenta a oposição entre o material e o espiritual.Nesse contexto, a ascese servirá para aproximar a pessoa da verdadeira realidade espiritual, ao sesublimar os impulsos “carnais”. A ideia da mortificação da carne está ausente no Antigo Testamento.
Com o advento do pentecostalismo, no século XIX, e do neopentecostalismo, nos anos 1980, o jejum assume um viés ainda menos ortodoxo, sem amparo bíblico, e tem sido usado para santificação, sacrifício, preparo para expulsar demônios e outras situações difíceis, subjugar a carne, conseguir uma bênção específica, busca de uma experiência mais intensa com o Espírito Santo, pela libertação de pessoas ou de nações ecomo condição à implantação de decretos divinos (atos proféticos). Mas não há respaldo bíblico sistemático para nenhuma dessas aplicações.
Ao contrário do que parece, o assunto é simples. A polêmica surge mais em função de tradições. Portanto, é mito que o asceticismo seja útil para santificação e resposta de Deus.
(Colossenses 2.20-23) – “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.”
(Mateus 9.16-17) – “Ninguém deita remendo de pano novo em vestido velho, porque semelhante remendo rompe o vestido, e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; aliás, rompem-se os odres e entorna-se o vinho, e os odres estragam-se; mas deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se conservam.”
e) DIFICULDADE E DOENÇA SÃO SINAIS DE QUE HÁ PECADO.
Origem provável: (João 5:14) – “Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior.”
Esse texto isolado pode respaldar a ideia de que problemas e doenças são castigos pelo pecado. Mas essa conclusão é prematura e até ingênua. Aquele paralítico pode ter ficado assim por causa de atividades ilícitas, mas naquela época já havia a ideia de que pecados são punidos com doenças, porque ainda não compreendiam as suas causas.
Esse conceito foi firmado na década de 1970, quando surgiu nos Estados Unidos a doutrina da Confissão Positiva, cujo pai foi Keneth Hagin, falecido em 2003. Kenneth Hagin influenciou muitos, como T. L. Osborn, Benny Himm, John Osteen, Morris Cerullo e Joyce Meyer, e muitas personalidades no Brasil, a exemplo de Valnice Milhomens e Silas Malafaia. Essa doutrina propala que devemos proferir palavras de vitória para ter vitória, determinar para a doença que se vá para ficar curado e coisas do tipo, além de quebra de maldições, maldições hereditárias e pecados de geração. Ocorre que essa abordagem não encontra sustento sistemático na Palavra de Deus e tem causado problemas no meio cristão evangélico. Sendo uma inverdade (porque o mundo não gira em torno do que falamos ou decretamos), não raro há casos de pessoas confusas, que não “avançam” na vida, apesar de viverem autoproclamando vitórias. Quando isso acontece, o remédio dessa “teologia” é: Você está em pecado. Simples assim, impingindo culpa e neuroses de toda espécie.
Homens e mulheres fiéis, desde tempos remotos, passando pela igreja primeva até a atualidade, têm sido acometidos por doenças e sérias dificuldades na vida. Essas ocorrências são normais para quaisquer pessoas, em face das limitações do nosso corpo e do estado deste mundo, e de maneira nenhuma empalidece o poder de Deus em nossas vidas. Ironicamente Keneth Hagin morreu por causa de doença. Não me alegro com esses infortúnios, apenas os cito para evidenciar que doenças não são evidência necessária de anormalidades em nossas vidas espirituais, e Deus pode curá-las de assim quiser.
(João 9:3) –“Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.”
(Romanos 7:24) – “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?”
(II Timóteo 4:20) – “Erasto ficou em Corinto, e deixei Trófimo doente em Mileto.”
f) A ORAÇÃO DO PASTOR TEM MAIS PODER.
Origem provável: (Hebreus 13:17) – “Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil.”
O livro de Atos retrata os feitos do Espírito Santo por meio dos apóstolos, pondo em relevo o que os primeiros discípulos do Senhor realizaram em nome de Jesus. Sempre houve e parece que sempre haverá pessoas que nasceram para liderar e outras que anseiam por ser lideradas. Parece ser inerente a alguns buscar a segurança de uma “cobertura” que as proteja.
Na Antiga Aliança havia classes sacerdotais. O sistema clerical do judaísmo contemplava sacerdotes e levitas. Os sacerdotes eram mediadores entre o povo e Deus, e os levitas cuidavam de todo aparato espiritual e administrativo da Casa de Deus.
Contudo, Jesus veio reorganizar esse sistema de normas religiosas e proporcionar um relacionamento novo entre homens e mulheres com Deus, por meio da fé. Ocorre que no meio cristão ainda persiste a ideia de classes sacerdotais composta de pessoas especiais, tal qual havia no sistema levítico, recaindo suas prerrogativas sobre pastores, bispos, apóstolos ou patriarcas. Se a comunidade aceita esse sistema e recebe tais lideranças como vozes exclusivas de Deus na igreja, fica fácil a proliferação de crendices e mitos.
Nesse contexto, a fé na oração do pastor é uma realidade. A partir do pressuposto de que ele é especial, nada faz mais sentido.
É preciso que o cristão entenda que vivemos a profecia do sacerdócio real de todos os crentes. Embora os pastores sejam homens de Deus que merecem todo o nosso respeito e consideração, a petição dele pode tanto quanto a minha e a sua.
(Marcos 16:17) –“E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas.”
(I Pedro 2:9) –“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz.”
(Tiago 5:16) – Confessai as vossas culpas uns aos outros, e orai uns pelos outros, para que sareis. A oração feita por um justo pode muito em seus efeitos.
(Veja também Jl 2.28-29, At 2.17-18 e At 5.16).
g) PASTOR DIVORCIADO PERDE A UNÇÃO.
Origem provável: (I Timóteo 3:2) –“Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma mulher, vigilante, sóbrio, honesto, hospitaleiro, apto para ensinar.”
Há três interpretações correntes para esse texto. (1) Que pretende afastar a poligamia, já que no primeiro século em Israel essa prática ainda era legal; (2) que era condição para o pastorado ser casado; e (3) que era condição para o pastorado que o candidato tenha se casado uma única vez na vida.
Além disso, é preciso considerar Mateus 19.9, onde Jesus orienta sobre o repúdio à mulher, divórcio e adultério. Nessas questões não podemos ser simplistas. É necessário se debruçar sobre o tema para a compreensão do que Jesus pretendeu ensinar quando tratou do “repúdio à mulher”. Não estaria Jesus reprimindo separações por motivos fúteis e banais? Ou será que Jesus proibira quaisquer separações conjugais apesar de todo tipo de dificuldades, incompatibilidades, humilhações, violências, vícios e desrespeitos, mesmo depois de todas as tentativas de perdão e recomeço?
O ideal é que não ocorressem divórcios. A vontade de Deus – está claro – é que o homem casado não se separe. Não podemos fazer apologia ao divórcio, mas parece-me meninice negar que há casamentos que infelizmente se tornam insustentáveis.
Sou casado há 21 anos com a primeira e mesma esposa, e pretendo permanecer assim, até que a morte nos separe. Mas por motivos diversos homens e mulheres de Deus abrem mão de seus matrimônios, e cada caso é uma história. O imaginário religioso, preconceitos e tradições acabam condenando essas pessoas ao ostracismo; pessoas que antes eram ferramentas nas mãos de Deus, transformando-as de um dia para outro em obreiros de segunda linha. Esse é mais um mito que precisamos reescrever, pois a realidade evidencia outro cenário. O Senhor é Deus de misericórdia e graça.
(Romanos 14:19) –“Sigamos, pois, as coisas que servem para a paz e para a edificação de uns para com os outros.”
(I Coríntios7:15) – “Mas, se o descrente se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não esta sujeito à servidão; mas Deus chamou-nos para a paz.”
(I João 3:20-21) –“Sabendo que, se o nosso coração nos condena, maior é Deus do que o nosso coração, e conhece todas as coisas. Amados, se o nosso coração não nos condena, temos confiança para com Deus.”