Por Nelson Gervoni
Sou de família assembleiana, quando nasci meus pais eram da Madureira, tenho dois primos e um tio pastores no Ministério do Belém, um segundo tio é pastor de Madureira, meu sogro é presbítero e dirigiu diversas congregações da Assembléia, minha esposa nasceu e foi criada nesta igreja e atualmente me vejo pastor ligado à CGADB (Convenção Geral das Assembléias de Deus) através do Belém.
Meu espírito livre me levou a sair da Assembléia de Deus ainda jovem, fiz minha formação teológica num Instituto Batista e por último pastoreei uma igreja anabatista de origem alemã. Por algumas razões há três anos retornei à Casa onde nasci.
Não demorou muito e percebi que a igreja à qual retornara não era mais aquela de onde saíra. Senti-me como alguém que deixa a pátria onde nasceu e ao retornar se sente como um estrangeiro da terra natal.
As diferenças eram tantas que me lembrei de uma frase inúmeras vezes repetida por meu avô materno (nascido em 1901 e convertido ainda jovem na Assembléia de Deus da Missão). Quando via algum absurdo da parte da liderança da igreja, o velho dizia: “Quando a Assembléia era de Deus, isso não acontecia”. E acrescentava, dizendo: “os homens se juntaram e tomaram de Deus a Assembléia de Deus, que agora é dos homens…”
Por ser criança não compreendia ao certo o que o levava meu avô a afirmar isso. Entretanto, esses três anos de Assembléia de Deus me levaram a uma compreensão empática do velho. Ou seja, não somente compreendo, mas sinto o que ele sentia. Havia na expressão do meu avô uma vanguarda profética.
Hoje, não chego a afirmar que a Assembléia não é de Deus, pois ainda há nela um povo caminhante que, não obstante sua liderança, serve a Deus com sinceridade e aguarda a volta do seu Redentor. Mas talvez esta seja uma das poucas características que ainda lhe assegure o nome que tem. A Assembléia não é dos homens. É de Deus. Mas não há dúvida de que os homens – suas lideranças – estão tratando-a como os sacerdotes dos tempos proféticos tratavam a Casa de Deus. Se não, vejamos.
Centralização do poder econômico
A Assembléia de Deus perdeu sua característica de comunidade simples e é uma das igrejas mais ricas do Brasil. Isso a torna semelhante ao Clero Romano que tanto criticamos por sua centralização de poder. Se parece com o sacerdócio do Antigo Testamento tão criticado pelos profetas de então.
Em nível nacional sua riqueza se concentra principalmente na CGADB – que tem como uma das principais fontes financeiras a CPAD (Casa Publicadora das Assembléias de Deus), cuja arrecadação se assemelha a de grandes editoras, como por exemplo, a Abril – e no Ministério do Belém, hegemônico entre os demais ministérios ligados à Convenção.
Estrategicamente esse império, formado principalmente pela CGADB e Belém, se concentra nas mãos de pouquíssimas pessoas, lideradas pelo pastor José Wellington Bezerra da Costa, na presidência simultânea das duas entidades há mais de duas décadas.
Em níveis regionais o poder econômico é distribuído favorecendo os mesmos presidentes de Campo que em nível nacional apóiam e se locupletam com José Wellington. A gestão dos Campos reproduz a administração regional, com centralização de poder e de dinheiro.
É canalizada para a Sede do Campo toda a renda das congregações que em virtude disso perdem a autonomia para realizações descentralizadas. Para citar só um exemplo, a Congregação onde ajudei ultimamente necessita de manutenção das suas dependências, de infra-estrutura para a Escola Dominical das crianças e de instrumentos musicais. Tem uma arrecadação mensal estimada entre R$ 5 mil e R$ 8 mil (digo estimada, pois não se tem acesso à informação da sua arrecadação), mas como deve encaminhar integralmente seus ingressos à Sede, não pode atender suas necessidades locais. Com isso, os departamentos fazem malabarismo para arrecadarem algum dinheiro. Por exemplo, o Círculo de Oração (departamento feminino) faz pizzas e nhoque e vende para os membros, que já contribuem com seus dízimos e ofertas.
Hereditariedade do poder
Outro fenômeno que vem se reproduzindo nas últimas décadas, em especial nas AD do Estado de São Paulo, é a hereditariedade de poder nas esferas regionais. É comum pastores presidentes de Campo prepararem seus filhos para os sucederem ministerialmente. Por exemplo, no Campo de Presidente Prudente/SP o pastor presidente atual é João Carlos Padilha, filho do ex-pastor presidente Carlos Padilha. No Campo de Indaiatuba/SP o pastor presidente é Raimundo Soares de Lima que tem como vice-presidente e sucessor estatutário o próprio filho, pastor Rubeneuton de Lima, mais conhecido como Newton Lima. No Campo de Araçatuba o presidente é o pastor Emanuel Barbosa Martins e o vice-presidente é seu filho, Emanuel Barbosa Martins Filho. No Campo de Limeira o ex-presidente, pastor Joel Amâncio de Souza, fez como seu sucessor o próprio filho, pastor Levy Ferreira de Souza. Medida que foi pivô de considerável divisão na igreja.
Há uma grande possibilidade da hereditariedade de poder se aplicar em nível nacional, pois é de conhecimento dos pastores da CGADB que o pastor José Wellington prepara sua sucessão para um dos filhos, José Wellington Costa Junior, vice-presidente da AD em São Paulo, Ministério do Belém e presidente do Conselho Administrativo da CPAD.
Cabe uma pergunta em relação a isso: É Deus ou o homem quem escolhe o sucessor da presidência da igreja? Penso que a possibilidade de Deus escolher tantos filhos de presidentes como seus sucessores está descartada.
As igrejas do Novo Testamento não eram assim. As congregações escolhiam seus oficiais (Atos 6.1-6, 14.23) e não tinham um pastor presidente que dominava sobre elas.
Sem transparência financeira
Outra coisa que me intrigou ao retornar para a Assembléia de Deus foi descobrir que não é dado saber – senão a duas ou três pessoas da diretoria da Sede – nada sobre a movimentação financeira do Campo. Estima-se que num Campo como o de Campinas, por exemplo, a receita gire em torno R$ 1,5 milhão por mês. Não se sabe ao certo quanto entra e como é gasto o dinheiro; quanto ganha por mês o pastor presidente, pastores regionais e distritais. Recentemente ouvi de uma liderança leiga que o custo de manutenção do pastor presidente, no caso do Campo de Campinas, beira os R$ 60 mil mensais.
Sabe-se, no entanto que as congregações das periferias são pastoreadas por homens simples, que mal recebem ajuda de custo. Assim, muitos têm seus empregos para se sustentarem e os que não conseguem se empregar chegam a passar por privações e apuros financeiros.
A explicação para a ocultação orçamentária é a segurança. Afirmam que não divulgam suas contas para evitarem assaltos. Isso não é verdadeiro, pois qualquer assaltante bem informado sabe que igrejas movimentam rios de dinheiro. E uma coisa é divulgar aos quatro cantos o quanto a igreja arrecada, expondo-a a riscos de roubos, outra coisa é manter seus membros informados do total coletivo das suas contribuições. Afinal, igreja não é empresa privada, que somente o dono tem acesso às suas informações financeiras.
Do ponto de vista legal as igrejas são associações civis regidas pelo Código Civil e como tais, segundo a legislação, devem prestar contas de sua movimentação financeira aos associados, que no caso da igreja são os seus membros. Por exemplo, o Artigo 59, Inciso III do Código Civil diz que “Compete privativamente à assembléia geral (…) aprovar as contas” da instituição. Como poderão aprovar (ou reprovar) as contas sobre a qual pouco ou nada se sabe? Ou como aprovarão se sequer participam das assembléias, em cuja pauta não se coloca em votação a aprovação financeira?
Do ponto de vista bíblico não há nada que se pareça com isso. Não há no Novo Testamento uma associação de igrejas com um presidente arrecadando os ingressos das congregações para administrá-los centralizadamente, se beneficiando de altos salários.
Entretanto, a falta de transparência financeira não é um “privilégio” exclusivo das igrejas e dos Campos. Recentemente o pastor Antonio Silva Santana, eleito em 2009 primeiro tesoureiro da GADB, renunciou alegando falta de acesso às principais informações de caráter fiscal e financeiro da instituição.
Quando não se lança luz sobre uma questão tão importante como esta, obscurece-se a verdade, dando margens a dúvidas. Por exemplo, pode-se perguntar se o dízimo dos contribuintes não foi usado nas últimas eleições para financiar campanhas políticas de pastores candidatos a cargos eletivos.
Esse questionamento nos leva ao próximo assunto.
Vínculo com a política partidária
Não é preciso fazer nenhum esforço mental para perceber que estas características (centralização do poder econômico, hereditariedade do poder e falta de transparência financeira) são próprias das instituições contaminadas pelo abuso de poder, pela ganância, pelo nepotismo, etc. Trata-se de um quadro muito comum nas esferas da política partidária. Assim sendo, como “um abismo chama outro abismo” (Salmo 42.7), era de se esperar que a Assembléia de Deus refizesse (pelo menos tenta refazer), através de sua atuação político-partidária, o casamento entre a Igreja e o Estado, união responsável pelo apodrecimento da fé e cujo divórcio custou o sangue de mártires na História do Cristianismo.
Há atualmente em algumas igrejas a idéia de que “o povo de Deus precisa de representantes na política”. Particularmente tenho uma opinião desenvolvida sobre isso, exposta em recente artigo que escrevi, “Por que não voto em ‘irmão de igreja’”, publicado em meu blog pessoal. Mas, opinião individual a parte, o que mais assusta é o pragmatismo com o qual essa questão vem sendo tratada nas Assembléias de Deus ligadas à CGADB.
A 33ª assembléia geral ordinária da CGADB, realizada em Belo Horizonte em 1997 – e portanto presidida pelo pastor José Wellington – aprovou uma resolução que recomenda aos pastores titulares não se candidatarem a cargos eletivos. Para se candidatar deve o ministro se desvincular de seu cargo pastoral. A resolução é sábia, pois visa, entre outras coisas, poupar a igreja de envolvimento com escândalos políticos que nela respingam, como ocorridos em episódios conhecidos.
Entretanto, não obstante a resolução, recentemente o pastor José Wellington esteve em Campinas e, numa reunião com pastores num hotel, pediu a estes o apoio à candidatura a deputado federal de seu filho Paulo Roberto Freire da Costa – presidente do Campo de Campinas – sem sequer tocar no assunto da desvinculação proposta na resolução que ambos ajudaram a aprovar. Paulo Freire foi eleito e continua presidente da Assembléia Campinas, como se a resolução não existisse.
Ironicamente, a igreja de Campinas foi envolvida num escândalo político quando pastoreada por Marinésio Soares da Silva, antecessor de Paulo Freire. O escândalo foi protagonizado por uma filha Marinésio, na ocasião deputada federal, tendo causado muitos sofrimentos à igreja.
O equivoco de se misturar poder político e igreja foi esclarecido por Cristo numa conversa com seus discípulos, narrada em Marcos 10. Tiago e João reivindicaram o direito de assentar-se com Jesus, um à direita e outro à esquerda do seu trono. Eles não haviam compreendido que o reino de Cristo não se daria na dimensão da política terrena. Para esclarecê-los Jesus lhes disse: “Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos” (Marcos 10.42-44, com grifo do autor).
A fala de Cristo (grifada acima) sempre será atual. Alerta contra a centralização do poder econômico, a hereditariedade do poder, a falta de transparência financeira e outras mazelas. As instituições mundanas agem dessa forma, “Mas entre vós não é assim”.
O fenômeno da naturalização
Chama a atenção em todo esse processo o fenômeno da naturalização. Ou seja, todas essas características são vistas e vividas como muito naturais, pela liderança e pela chamada “membresia”. A centralização e a hereditariedade do poder, a falta de comunicação e clareza sobre as contas e o relacionamento – fisiológico, inclusive – com a política, são encarados como algo muito normal e, portanto, sem a necessidade de qualquer questionamento.
Todas essas peculiaridades geralmente são justificadas pela “unção” recebida pelo “homem de Deus”, inclusive com uma equivocada interpretação do texto bíblico que diz “Não toqueis os meus ungidos, e aos meus profetas não façais mal” (1 Crônicas 16.22 e Salmo 105.15). Assim, um “ungido” centraliza o poder e designa-o a quem bem entende – geralmente aos filhos – e os demais ungidos e profetas aceitam sem nada dizer. Da mesma forma, se ele é um “ungido de Deus”, tem autonomia, à custa da heteronomia dos demais, para administrar as finanças da igreja sem delas ter que prestar contas. Por outro lado, os membros se isentam da responsabilidade de fiscalizar, pois acreditam que seu papel é apenas trazer os dízimos (Malaquias 3.10) sem se preocupar com o que será feito dele.
As semelhanças desse modelo com a política fisiológica, voltada para projetos pessoais, são muitas. Isso explica o casamento da igreja com a política partidária.
Será que não estamos diante da síndrome de Eli?
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Nelson Gervoni é pastor da Assembléia de Deus filiado à CGADB, é Coordenador de Projetos Educacionais do Instituto Souza Campos – Pólo Educacional da Universidade Luterana do Brasil em Campinas, SP e integrante do GEPEM da Faculdade de Educação da Unicamp. Artigo enviado pelo autor, para colaboração no Púlpito Cristão