Por Kátia Mello
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“Cerca de 15 minutos antes do terremoto, a bebê começou a chorar. Não parecia haver nada de errado. Tirei-a do berço e tentei acalmá-la, mas ela não parava. Quando a peguei no colo, o apartamento inteiro começou a tremer. Abracei-a e a protegi até o tremor parar – foi quando ela chorou realmente alto. Quando o terremoto parou, ela também parou de chorar.
Parecia que ela sabia que algo ruim estava para acontecer”, conta a brasileira Márcia Fushima, de 33 anos, há 10 morando em Tóquio.
A pequena Aika, de 10 meses, filha de Márcia com o marido Atsuko, parece já saber que, como japonesa, precisa se acostumar com os tremores que castigam o país. O Japão está localizado em uma das áreas de maior instabilidade da Terra: na junção de três placas tectônicas que, ao se movimentarem, geram tremores. O terremoto de 11 de março, que fez Aika chorar alto, alcançou magnitude 9, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) – é o quarto maior do mundo e o maior já registrado no Japão. Seguido dele veio a onda gigante, o tsunami gerado pelo movimento do tremor, que engoliu vilarejos costeiros inteiros ao nordeste do país e dizimou cidades importantes como Sendai, com cerca de 1 milhão de habitantes, que foi atingida por ondas de 10 metros de altura. Até a quarta-feira (16), apenas dois dos 12 mil moradores da pequena cidade costeira de Otsuchi, por exemplo, haviam sido encontrados.
Houve incêndios em grande parte do país, estradas racharam e as redes de energia e telefonia ficaram destruídas, colocando o Japão em um estado caótico nunca antes visto.
Mesmo em um país que se prepara para enfrentar esse tipo de desastre natural desde o grande terremoto de 1923, que matou 140 mil pessoas na região de Kanto, e já teve de lidar com outras catástrofes como os ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki, no fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). O Japão não pôde evitar os estragos causados pela quantidade descomunal de água vinda do mar, tampouco os efeitos da falta dela: três dos quatro reatores nucleares da usina de Fukushima superaqueceram por conta de panes no sistema de resfriamento (leia mais na página 12), trazendo de volta o pânico de uma contaminação nuclear.
Na última segunda-feira (14), um incêndio no reator número 4 e uma explosão no reator 2 colocaram em alerta a população, principalmente depois que o premier japonês, Naoto Kan, informou que esse incêndio elevou o nível de radiação consideravelmente e que a área isolada fosse ampliada para um raio de 30 quilômetros. Foram detectados também níveis mais elevados de radiação em Tóquio e a orientação era para que as pessoas ficassem dentro de suas casas, o que colocou parte da população em pânico. O que se viu, na terça-feira (15), foram voos sendo cancelados, empresas retirando funcionários da cidade e turistas querendo voltar para casa, apesar do governo descartar o perigo de contaminação.
No dia seguinte, o imperador do Japão, Akihito, de 77 anos, fez um de seus raros discursos à nação por meio da televisão. “Espero, do fundo do coração, que as pessoas se tratem com compaixão e consigam ultrapassar estes tempos difíceis”, disse.
Depois do incêndio no reator 4, organizações do mundo inteiro começaram a se preocupar com o vazamento nuclear. A Comissão Europeia classificou a situação da usina como “apocalíptica”, apontando o descontrole sobre os reatores, apesar de, no momento da declaração, dois deles já estarem a ponto de normalizar seus sistemas de resfriamento.
“Há desde amortecedores hidráulicos que minimizam os efeitos dos tremores a dispositivos que dissipam as ondas. É caríssimo, mas funciona”, diz o engenheiro civil Sérgio Araújo, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
“Minha reação foi sair de casa. O pessoal só sai se o teto estiver caindo. Até aí
a orientação é ir para baixo de uma mesa. Já nós brasileiros somos desesperados. Eu não queria voltar para casa, senti muito medo e impotência. Mas para a maioria dos meus vizinhos tudo parecia normal. Eles arrumaram as
coisas e voltaram à rotina”, conta a brasileira Denize Ono, que mora na província de Yokohama.
“Essa é uma característica cultural japonesa. Entre os símbolos que mais admiramos está a carpa, peixe que é um símbolo de força e determinação. Ele nada contra a corrente, é bravo e não se entrega fácil. Está na cultura do povo japonês não apenas respeitar esses valores, mas persegui-los”, conta Cristiane.
Prejuízos
Até agora, o prejuízo estimado pelo governo japonês é de US$ 180 bilhões (R$ 306 bilhões). “O Japão tem uma das economias mais desenvolvidas do mundo.
As cidades atingidas são responsáveis por quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, o que significa que haverá reflexo na economia, mas não de grande proporção. Eles experimentarão uma desaceleração econômica nos próximos 6 meses, mas acredito que no último trimestre do ano já estejam recuperados”, aposta o professor de economia Giuliano Contento de Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Se o Japão renasceu depois da 2ª Guerra Mundial, reconstruindo uma economia completamente destruída, além de reerguer duas cidades dizimadas, acredito que este desafio será superado”, compara o professor.
Já a reconstrução física do país deve demorar um pouco mais. “É difícil ‘chutar’ quanto tempo vai levar. Mas acredito que em pouco mais de 1 ano não haverá muitos vestígios do que aconteceu semana retrasada”, acredita o engenheiro Sérgio Augusto. De qualquer forma, ninguém duvida que esse povo guerreiro deve se superar mais uma vez.
“Esse tipo da radiação tem três comprimentos de onda: alfa, beta e gama. A alfa causa queimaduras na pele, como foi o caso das pessoas atingidas pelas bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Já a beta e a gama causam alteração no código genético e isso pode causar câncer. Sabe-se que quanto maior a concentração de radiação no corpo, maior a chance da pessoa desenvolver tumores”, explica o professor Nelson Canzian, do departamento de física da Universidade Federal da Santa Catarina (UFSC).
O governo japonês orienta as pessoas a ficarem em casa principalmente porque estes incêndios e explosões geram cinza nuclear, um resíduo que paira no ar, penetra no corpo pelas vias respiratórias e é facilmente assimilado pelo organismo. “A diferença entre a radiação da bomba e a da usina é que a da bomba mata primeiro pelo choque e pelo calor, e depois pela radiação”, explica Nelson.
Treinamento
Não faltariam motivos para que o sentimento geral fosse de apatia e resignação, mas os japoneses enfrentam os reveses de outra forma, além de usarem a dor das tragédias passadas para se aprimorar.
“O dia 1º de setembro é feriado no Japão por causa do terremoto de 1923, e é também o dia do treinamento. Eles falam para as crianças: ‘muita gente morreu para que você tenha a chance de viver’. Quando acontecem desastres dessa magnitude, eles chamam de ‘dia da verdade’, quando você mostra quem é realmente. E então o povo japonês, que costuma ser reservado e competitivo, coloca em prática toda a sua gentileza e solidariedade. Eles sabem que, se começarem a se trair, nada vai dar certo”, explica a especialista em cultura japonesa Cristiane Sato, advogada e autora do site www.culturajaponesa.com.br .
O nível de organização e civilidade do povo japonês transparece nas fotos sobre o desastre. É possível ver que, nos abrigos, todos usam o mesmo
cobertor distribuído pela defesa civil – a mais preparada do mundo –, e não há preocupação com os pertences. Não há saques, como costuma ocorrer em situações de calamidade em outras partes do mundo.
Muitos mercados e restaurantes fecharam, já que não têm o que vender. Já nos abrigos, não falta nada. “Um amigo me falou que a comida do abrigo é melhor que a da universidade”, conta a produtora Tânia Oda, de 26 anos, que morou no Japão entre 2004 e 2005. Apesar de haver um aparente pânico pelo fim dos suprimentos, ninguém mexe no que é dos outros.
“Para um japonês, se você rouba algo está mostrando seu verdadeiro valor. Se rouba o dinheiro do caixa de uma loja, seu caráter vale apenas aqueles trocados. E, ao cometer um ato destes, você envergonha toda a sua família. Não há nada mais importante para um japonês do que a honra”, conta Tânia.
“Eles têm um fator cultural que é: com trabalho e esforço tudo se consegue. Isso está arraigado na cultura e a superação de tantas tragédias está diretamente ligada a esse fator. A questão ‘será possível recuperar?’ nem é
cogitada. Até eu penso assim”, conta a jornalista Angélica Bito, de 29 anos, cujo pai é japonês.
Lições
Há mais de 80 anos o país investe no desenvolvimento de programas de treinamento para os cidadãos, em dispositivos arquitetônicos de segurança – tantos e tão funcionais que passaram a fazer parte das exigências básicas na hora de construir um prédio –, além de manuais de sobrevivência em catástrofes, distribuídos em larga escala. A última grande lição do país aconteceu em 1995, na cidade de Kobe, que sucumbiu a um tremor de intensidade 7,3, matando mais de 5 mil pessoas. Até a quarta-feira (16), o governo japonês contabilizava 4,3 mil mortos em decorrência da tragédia mais recente, número que certamente subirá, já que há algo em torno de 15 mil desaparecidos.