A descoberta da suposta ossada de João Batista expõe a pressa de quem quer explorar a fé para ganhar dinheiro com o turismo religioso.
O anúncio da descoberta de supostas relíquias de São João Batista por um time de arqueólogos búlgaros tinha tudo para rodar o mundo reacendendo a fé de fiéis desgarrados e converter incrédulos. Afinal, desde o século IV, é essa a função desses objetos de veneração, segundo a Igreja Católica. Mas pouco depois do anúncio, no dia 28 de julho, uma barbeiragem política quase colocou tudo a perder.
Antes de se informar sobre os detalhes do achado, o ministro búlgaro Bozhidar Dimitrov, historiador e diretor do Museu Nacional de História da Bulgária, declarou que a cidade de Sozopol, onde o tesouro foi descoberto, tinha potencial para se tornar um ponto de turismo religioso. Então, o manto de fé e misticismo que encobria o achado foi subitamente substituído pela desconfiança e a suspeição. As relíquias de São João Batista na Bulgária seriam um golpe para transformar Sozopol em atração turística?
Há 50 mil destinos de turismo religioso no mundo. Cerca de 300 milhões de pessoas os visitam anualmente, movimentando algo em torno de US$ 18 bilhões. Em um universo tão grande, ter uma relíquia é diferencial de mercado. O exemplo búlgaro é cristalino. Desde que parte do achado foi colocada em exposição na Igreja de São Jorge, na cidade de Sozopol, a média de visitas diárias saltou de 100 para três mil, segundo o Balkan Trabellers, site especializado em turismo na região.
Mas não é a primeira vez que isso acontece. São João Batista, um dos protagonistas do Novo Testamento, responsável pelo batismo de Jesus Cristo, morto por ordem do rei Herodes, tem supostas relíquias espalhadas por toda a Europa e parte do Oriente Médio. Pelo menos sete destinos religiosos as anunciam como principal atração (leia quadro). Se todos que dizem exibir a suposta cabeça do santo estivessem certos, João Batista, que morreu decapitado, teria quatro. “Boa parte dos objetos que já chegam identificados como relíquia, quando examinados, não são”, explica o arqueólogo Rodrigo da Silva, doutor em teologia bíblica. “A fé ou o interesse é que alçam os objetos a essa condição sem o cuidado necessário.”
Por cuidado ele se refere ao estudo científico do objeto, procedimento ao qual a Igreja tem se mostrado cada vez mais disposta a permitir, mas que os oportunistas insistem em atropelar. “O Vaticano sempre teve dificuldade para identificar as verdadeiras relíquias”, reconhece o padre Valeriano Costa, diretor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nos dois mil anos de história da Igreja, poucos períodos foram tão complicados quanto as Cruzadas. Entre os séculos XI e XIII, quase todo soldado que voltava das guerras no Oriente Médio trazia uma lembrança, fosse uma lasca da cruz de Cristo, uma pena da pomba do Espírito Santo, ou uma gota de leite do seio da Virgem Maria. “Mas não havia malícia”, diz o padre Benedito Ferraro, professor de teologia e doutor na disciplina pela Universidade de Friburgo, na Suíça. “Era um tempo em que a fé se sobrepujava à razão.”
Hoje não mais. Por isso a reação colérica das comunidades arqueológica e católica diante da declaração de Dimitrov. “Ninguém, em sã consciência, seja religioso ou ateu, pode cravar que os oito pedaços de osso guardados no relicário pertencem a São João Batista”, disse Kazimir Popkonstantinov, professor da Universidade de Veliko Tarnovo que fez a descoberta e sugeriu que os ossos poderiam pertencer ao santo. “Precisamos investigar antes de tirar conclusões.” Entre os estudos, estão a verificação do sexo e da idade da ossada e a análise da origem das pedras de alabastro que montam o relicário. Se nem o Santo Sudário, a relíquia mais importante da Igreja, chegou ao fim do processo de verificação, o reconhecimento ou não dos supostos ossos de São João certamente vai demorar. Mas, para uma instituição milenar como a romana, tempo não é problema.
Data: 23/8/2010 08:29:39
Fonte: Isto É