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Rosinha Garotinho contra Darwin


Governo do Rio de Janeiro institui aulas que questionam a evolução das espécies

ELISA MARTINS e VALÉRIA FRANÇA

Presbiteriana, eleita com amplo apoio das igrejas evangélicas, a governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus, reacendeu uma velha disputa sobre a separação entre religião e Estado. Desde o fim de março, metade dos alunos da rede pública, 761.280 jovens a partir de 7 anos de idade, vem tendo aulas de religião. O Ministério da Educação recomenda que essas aulas dêem noções aos alunos sobre o que dizem todas as religiões, sem emitir opinião sobre elas. No Rio, porém, a orientação é diferente – há professores religiosos, que dão aulas sob o ponto de vista de suas crenças. O currículo básico prevê ”reflexões sobre a criação de Deus como um ato de amor”, mas não determina o que realmente será ensinado nas escolas. Pela flexibilidade, parte dos alunos está aprendendo – 145 anos depois de o evolucionista inglês Charles Darwin publicarOrigem das Espécies – que o homem foi criado do barro e a mulher veio da costela de Adão. ”Criacionismo não faz parte do programa mínimo de aulas”, diz a coordenadora de educação religiosa da Secretaria Estadual de Educação, a católica Edilea Santos. ”Mas, se o professor quiser falar sobre isso, não temos como saber. Quando ele fecha a porta da sala, só Deus é testemunha”, afirma.

Marcia Foletto/Ag. O Globo

Reprodução


DÚVIDA
”Não acredito na evolução das espécies”, declarou Rosinha

CONSENSUAL
A teoria de Darwin vem sendo comprovada há um século e meio

A lei que oferece aulas confessionais de religião nas escolas públicas do Rio vem de 2002, do governo de Anthony Garotinho, marido da governadora. No ano passado, Rosinha abriu concurso para 500 novos professores confessionais – 342 vagas para católicos, 132 para evangélicos e 26 para os demais credos. Hoje, há 793 professores de religião pagos pelo Estado em escolas de 92 municípios do Rio. A política é obra de uma governadora que anunciou em entrevista a O Globo: ”Não acredito na evolução das espécies. Tudo isso é teoria”.

As posições defendidas pela governadora e sua equipe deixaram a comunidade científica em pânico. ”A teoria criacionista, em contraponto ao evolucionismo, não se sustenta. Pode até gerar confusão na cabeça do aluno. É uma propaganda enganosa”, acusa o físico Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). ”É uma instrumentalização pouco ética de usar o poder político para impor tendências, induzir à propagação de crenças ou leituras particulares de textos tradicionalmente sagrados.” A crítica não é contra o ensino religioso, mas contra a pregação de uma crença religiosa como se fosse um argumento científico.

Denise Adams/ÉPOCA

CIENTISTA
Marcia, doutora em Microbiologia pela USP, coordena o núcleo de criacionismo em uma universidade adventista

A briga religiosa contra a biologia surgiu em meados do século XIX, quando o naturalista Charles Darwin lançou uma teoria revolucionária para explicar a diversidade da vida. Segundo Darwin, as espécies evoluem a partir de mutações geradas ao acaso. Os indivíduos com características vantajosas, como um pássaro com bico mais afiado ou um peixe com nadadeiras mais fortes, têm mais chances de sobreviver e passar esses traços às próximas gerações. Assim, gradualmente, as espécies vão se transformando. Essa visão foi criticada pelos religiosos desde o início por tirar do homem o status de ”criado à imagem e semelhança” de Deus, rebaixando-o a um mero macaco aperfeiçoado (o homem tem 98,5% do DNA igual ao do chimpanzé). Desde 1859, quando Darwin lançou seu livro, suas idéias foram sendo em parte comprovadas e em parte aperfeiçoadas por pesquisas – e se tornaram o padrão das Ciências Naturais. Hoje, a teoria da evolução suscita debates na comunidade acadêmica, mas não porque se duvide de sua validade. O que se discute, a partir de novas evidências, são detalhes como qual seria o ritmo da criação de espécies e de que forma alguns fatores – mudanças climáticas, por exemplo – podem acelerar esse processo. Os antropólogos acreditam que nossa espécie é apenas a mais bem-sucedida de um punhado de primatas que, há 6 milhões de anos, se separou do ramo dos macacos atuais. Os humanos de hoje, o Homo sapiens, surgiram entre 250 mil e 150 mil anos atrás.

A maioria das religiões cristãs se adaptou, ao longo do tempo, ao avanço da Ciência. Elas lêem o texto do Gênesis – o livro bíblico que trata da criação do mundo – como um relato simbólico, que não deve ser tomado ao pé da letra. Afinal, era esse o tipo de linguagem que os escribas religiosos judeus usavam por volta do século IX a.C., quando o livro foi escrito. Pensadores católicos ou de várias linhas protestantes de lá para cá reafirmam que a crença não é incompatível com a Ciência, desde que se entenda o relato do Gênesis dentro de seu contexto original. Quem discorda dessa visão são os grupos conhecidos como fundamentalistas – aqueles que defendem a idéia de que a Bíblia deve ser lida de forma literal, como se fosse um livro científico escrito no século XX. O principal hábitat desse grupo, composto de algumas denominações evangélicas, são os Estados Unidos – o país onde o criacionismo nasceu e tornou-se mais difundido. A disputa lá é antiga. Caso célebre foi a condenação, em 1925, de um professor, John Scopes, acusado de ensinar evolucionismo aos alunos. No Estado do Tennessee, onde o fato se deu, o ensino da teoria de Darwin era proibido por lei. Em 1999, o Conselho da Educação do Estado de Kansas também decidiu suprimir a matéria das escolas públicas. Em 2001, ä pressionado pela opinião pública, voltou atrás. Um ano depois, Ohio deixou por conta das escolas a opção de incluir o criacionismo nas aulas de Biologia. Segundo o Instituto Gallup, 90% dos americanos acreditam que Deus desempenhou algum papel na criação. Outras pesquisas apontam que 45% crêem na formação do mundo exatamente como relata o Gênesis. Também é o caso da governadora Rosinha.

Roberto Setton/ÉPOCA

PRÁTICA
A enfermeira Andréa está satisfeita com a confirmação da fé

Os criacionistas brasileiros são descendentes de uma geração de crentes que tenta encontrar razões científicas para comprovar a história do Gênesis bíblico. Chamados de neocriacionistas, eles não são exatamente do tipo que anda com aBíblia embaixo do braço para defender suas idéias, mas enxergam Deus nas menores frestas do darwinismo. Em geral aceitam, até certo ponto, a evolução. Não admitem, no entanto, que ela tenha por si só possibilitado o advento de animais e plantas ditos superiores, uma obra de Deus. Esses neocriacionistas, como seus adversários, têm Ph.D. em universidades americanas. O bioquímico americano Duane Gish, por exemplo, vice-presidente do Institute for Creation Research (ICR), já esteve no Brasil cinco vezes, dando palestras até na Universidade de São Paulo (USP). Gish contesta não apenas a teoria da evolução como a mais aceita sobre a origem do Universo, a do big bang – que, mesmo entre os cientistas, é polêmica.

Idéias como a de Gish são disseminadas pela Sociedade Criacionista Brasileira, com mil associados. ”Nosso objetivo é divulgar a idéia no país”, diz o presidente, professor Ruy Vieira. Sem vínculo com nenhuma entidade religiosa específica, a organização traduz e edita livros sobre o tema para todas as faixas etárias. Tem livros até para os alunos do ensino fundamental. Um dos principais focos de ensino criacionista no Brasil é a rede particular de escolas e universidades adventistas. Há cinco anos, o Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) montou o Núcleo de Estudo das Origens (NEO) para orientar seus cerca de 4 mil alunos. Dentro do currículo dos cursos de graduação, há um curso chamado Ciência das Origens, ministrado por seis acadêmicos de várias áreas. ”Usamos teorias científicas para provar e fortalecer o criacionismo”, diz Euler Pereira Bahia, reitor da universidade.

A Sociedade Criacionista Brasileira produz material didático

Durante o curso, tenta-se apontar falhas da teoria evolucionista. Em uma das aulas, o professor Urias Takatohi mostra slides de uma viagem que ele fez ao Grand Canyon, nos Estados Unidos, para falar de Geologia. São o gancho para que ele diga que aquelas rochas expostas no desfiladeiro não exibem evidências de um período geológico conhecido como ordoviciano, que ocorreu entre 490 milhões e 430 milhões de anos atrás e foi marcado pela explosão de espécies dos mares e pela diversificação na flora dos continentes. ”Isso mostra que pode haver falhas na teoria da evolução”, diz Urias Takatohi, doutor em Física pela USP. Ouvinte atenta, a aluna Andréa Veiga Abreu, de 27 anos, ficou muito satisfeita com a explicação. Filha de pais evangélicos, ela cresceu ouvindo que Deus criou o céu e a terra. Na igreja, recebeu aulas esclarecedoras sobre as passagens bíblicas. ”Na faculdade minha fé está sendo reforçada com exemplos da vida real”, diz Andréa, que está no 3o semestre de enfermagem da Unasp e trabalha no Hospital São Luiz. Já Ingrid Tatiana dos Santos, de 23 anos, no último ano de Biologia, teme não estar se aprofundando o suficiente em conhecimentos essenciais por limitações religiosas. ”O contato com a teoria evolucionista pura, que é importante na minha formação, acontece apenas superficialmente”, reclama a aluna, que ao nascer foi batizada na Igreja Católica.

Na Unasp, 4 mil graduandos têm aulas que questionam Darwin

O curso é justificado pela coordenadora do NEO, Marcia Oliveira de Paula, de 43 anos, doutora em Microbiologia pela USP. ”O resultado é que o aluno aprende mais do que o MEC exige”, diz. Está acostumada a ser alvo de críticas dos colegas. ”Nem sempre as pessoas entendem quem tem idéias diferentes”, diz. A doutora foi criada numa família adventista e adaptou os conhecimentos que adquiriu a sua fé. Quando discute a origem da vida, adverte que o tempo cronológico da formação do Universo segundo os criacionistas diverge da linha aceita pela Ciência. ”O planeta tem apenas de 10 mil a 6 mil anos de existência”, sustenta. A estimativa vem da idade suposta dos patriarcas citados na Bíblia. Mas é difícil dizer que foi naquele tempo que Deus criou o mundo porque, segundo a arqueologia consensual, há 6 mil anos os povos da Mesopotâmia (hoje Iraque) já estavam desenvolvendo a escrita.

As principais diferenças

ELISA MARTINS e VALÉRIA FRANÇA

AS HISTÓRIAS DA VIDA
Segundo os cientistas, a Terra surgiu há cerca de 4,5 bilhões de anos. Mas o grupo criacionista do Núcleo de Estudo das Origens afirma que a história do mundo começou há 6 mil anos

Versão científica da evolução da vida e
da história das civilizações


De 4,6 a 4,5 bilhões de anos

A Terra se forma a partir de matéria solta em torno do Sol


3,8 bilhões de anos

As primeiras bactérias surgem, estimuladas por tempestades elétricas


De 245 a 65 milhões de anos

Os répteis evoluem para os dinossauros, que dominam o planeta


65 milhões de anos

Um cataclismo, provavelmente um meteoro, extingue os dinossauros

Versão científica
Versão criacionista

150 mil anos
O Homo sapiens surge na África a partir de primatas mais primitivos

6.314 anos (4310 a.C.)
Deus criou a Terra, com os
mares, o céu e os bichos

6 mil anos (4000 a.C.)
Povos da Mesopotâmia (atual Iraque) desenvolvem a escrita

6.314 anos
Logo depois de criar o mundo, Deus também fez os seres humanos

5.200 anos (3200 a.C.)
Ascensão da civilização egípcia e construção das pirâmides

4.314 anos (2310 a.C.)
O dilúvio exterminou várias espécies, inclusive os dinossauros

4 mil anos (2000 a.C.)
Organização das cidades-estado na Grécia, como Atenas e Esparta

4.314 anos
Em questão de dias, as águas baixaram, dando lugar à fauna atual

Fotos: Repodução