Um dos países mais atingidos pela epidemia do Covid-19 é a Coreia do Sul. Neste momento tem o segundo maior número de infectados depois da China e o quarto maior número de vítimas mortais, a seguir à China, à Itália e ao Irão. Elemento central na situação coreana é uma igreja até agora pouco conhecida fora do país, a Shincheonji, ou, Igreja de Jesus, o Templo do Tabernáculo do Testemunho. É uma de muitas seitas que existem no país maioritariamente não-religioso, mas onde o cristianismo permanece a religião mais praticada, seguida do budismo.
Como a mulher foi a 31ª pessoa a ser identificada com o vírus, apelidaram-na “doente 31” e rapidamente começou a ser objeto de vilificação. Mas a culpa não foi só dela. Muitas das suas acções, incluindo o facto de não ter revelado sintomas que já lhe eram percetiveis, correspondem ao que é normal na sua igreja. A Shincheonji obriga os seus membros a comparecerem nos serviços mesmo quando estão doentes. As orações são feitas com os membros muito próximos uns dos outros, e são proibidos de usar máscara no templo, por se considerar que isso ofende a Deus.
Acima de tudo, a igreja encoraja os seguidores a ocultarem a sua condição de membros, em parte para facilitar as práticas de proselitismo subrreptício que têm feito com que seja vista como uma das seitas mais agressivas no país, e mesmo fora, inclusivé na China. Apesar de este país proibir os missionários, a Shincheonji parece ter tido bastante sucesso.
Um profissional de saúde infectado
A epidemia agora desencadeada partiu de um templo da Shincheonji situado em Daegu, uma cidade no sul do país. Membros chineses provenientes da cidade chinesa de Wuhan – o foco original do Covid-19 – poderão estar na origem do surto. Seja como for, a epidemia não demorou a espalhar-se, atingindo alvos por vezes inesperados. Uma das surpresas foi a de descobrir que o diretor do serviço de prevenção de doenças infecciosas da cidade era membro da seita e estava infectado, tal como um polícia e uma professora de uma escola.
Quando o caso da doente 31 foi noticiado e começaram as críticas, a igreja instruiu os fiéis para desobedecerem às ordens do governo e esconderem que eram membros. Numa mensagem que escreveu numa aplicação interna da igreja, Lee Man-hee dizia: “Este caso de doença é visto como a obra do demónio para parar o rápido crescimento da Shincheonji. Tal como as provas que Job atravessou, é para destruir o nosso avanço”.
A Shincheonji é agora acusada de ter impedido as autoridades de monitorizar e isolar as pessoas infetadas. Só depois de as autoridades revistarem instalações da igreja, levando computadores com a lista de membros, é que a igreja disponibilizou finalmente os nomes, garantindo que estava a fazer tudo para ajudar as autoridades.
Recrutamento ardiloso
A Shincheojin foi fundada em 1984 por Lee Man-hee, um homem atualmente com 88 anos que diz ser a reencarnação de Cristo e promete levar 144 mil fiéis para o céu com ele. Neste momento, a igreja conta com mais de 245 mil membros, e mais algumas dezenas de milhares noutros países. Na China, é considerada a seita cristã mais agressiva, até pelo hábito que tem de infiltrar outros grupos religiosos e recrutar entre eles.
Ex-membros da igreja têm descrito um processo típico de recrutamento. São abordados por pessoas simpáticas e joviais que se propõem conviver com eles, muitas vezes sem referir a sua pertença àquela igreja, ou até negando que pertençam a alguma. Quando o potencial recruta já está cativado, sugerem-lhe que participe nalguma atividade, por exemplo um estudo da Bíblia, e o processo vai avançando. Se o recrutamento se concretiza, o novo membro passa a ter as mesmas obrigações dos outros, incluindo a de recrutar ativamente.
Muitos membros são pessoas que se encontravam em situações de relativo desamparo emocional e procura-se que estejam sempre rodeados de amigos da igreja, para dar apoio e sobretudo para garantir que ficam monitorizados em permanência. Os monitorizadores são conhecidos por “olhos”, e os novos membros como “fruta nova” ou “novos frutos”.
Esperança e nacionalismo
Com dez mil missionários em atividade – o maior número depois dos Estados Unidos – a Coreia do Sul é terreno fértil para seitas. Ao longo das décadas, não têm faltado escândalos a envolvê-las. Um dos casos notórios dos últimos anos levou à demissão da presidente Park Geun-hye, em 2016, num caso de corrupção em que um dos protagonistas era uma amiga, filha do fundador de uma seita xamânica, a Igreja da Vida Eterna, que negociava vendas de decisões politicas através de subornos. Outro caso aconteceu em 2014, quando o afundamento de um ferry matou 304 pessoas, na sua maioria crianças. Não demorou a saber-se que o líder de uma tal Igreja Evangélica Batista
tinha reconvertido o navio de uma forma que o deixara sem condições mínimas de segurança.
Ainda em julho passado, o líder de um culto apocalíptico foi preso por sequestrar, espancar e escravizar centenas dos seus seguidores. E também tem havido escândalos sexuais, com líderes que abusam sexualmente de membros durante bastante tempo.
Um professor de Busan que estuda as seitas, Tark Ji-il, explicou ao “South China Morning Post” que o apelo tem muito a ver com a sucessão de tragédias que atingiram o país durante o século XX. Primeiro a ocupação japonesa, depois a guerra civil, e finalmente a ditadura militar: “A igreja falava do reino dos céus, mas os cultos prometiam o reino na terra e o fim iminente do mundo, de modo que tudo podia mudar”. Tudo isso à mistura com apelos nacionalistas, pois a salvação é apresentada como algo dirigido e destinado aos coreanos. Mesmo depois do Covid-19, isso continuará a acontecer durante bastante tempo.