Canoa furada
Enviada pelo autor Ercílio Ribeiro a quem presto minhas homenagens.
Canoa(Romanos 11:33-36) – Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Porque, quem compreendeu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém.
É natural que a música nos conduza a experiências incomuns. A música – digo melodia – assim como um perfume, tem o poder de estimular comportamentos e emoções há muito adormecidos. No entanto, tratando-se de melodias que se prestem ao culto e propõem o enlevo espiritual, é recomendável que não fiquemos apenas nas emoções; é preciso dedicar especial cuidado ao que se canta, à letra contida na melodia.
Se fizermos isso, é provável que a gente descubra que estamos cantando o que não acreditamos. Muitas vezes cantamos equívocos, sem qualquer referência teológica ou bíblica. Poderíamos citar centenas de exemplos, mas o espaço aqui é curto. Ligue seu rádio numa emissora evangélica e não será difícil constatar o que já constatei: letras absurdas, superficiais e dramaticamente egocêntricas: “pela fé, não há muralhas que ficarão de pé diante de mim”; “sai da minha frente que eu quero passar, se não sair agora vou passar por cima”, “a morte de Jesus na cruz é só para você” e outras pérolas.
Claro que não se pode generalizar. Há lindíssimas canções, com mensagens corretas e que realmente exaltam o Deus Vivo pelo que Ele é. Contudo, muitos trechos revelam o que tem sido um cancro na igreja brasileira: a superficialidade associada ao egocentrismo. Fala-se de Deus, canta-se Jesus, mas o cerne das canções, inadvertidamente, é a exaltação do “eu”, da minha fé, da minha força, da minhacoragem, da minha ousadia, dos meus talentos, do meu sacrifício, da minha vitória; porque Deus existe para me fazer feliz, para satisfazer as minhas necessidades, porque Jesus morreu por mim, para me dar a vida eterna. Essas músicas revelam um Deus abobalhado dentro de um shopping, disposto a me comprar tudo que peço, que é deslumbrado por mim e está disposto a recompensar a minha grande fé e ousadia.
Sem medo de errar, talvez cerca de 80% das músicas compostas sob o pretexto do evangelicalismo contêm em demasia as palavraseu, mim, meu, minha e nosso, e os verbos estão sempre na primeira pessoa. Pouco se canta sobre a condição do homem, enquanto pecador, fatalmente frágil. Pouco se canta sobre arrependimento, humilhação e ser sal na terra. Pouco se canta sobre a necessidade de santidade e renúncias, e quando muito é para estimular sacrifícios e asceses bem no estilo levítico. Muito se canta sobre liberdade, mas somente aquela que deixa extravasar manifestações do crente no culto, como pular, gritar, dançar e correr (Jesus se deu para esse tipo de “liberdade”? Ouvi ontem o testemunho de um irmão de 50 anos de idade que foi agredido por sua enteada de apenas 16, e não reagiu. Talvez isso seja liberdade). Pouco ou nada se canta sobre a sobreexcelência do Pai, que, apesar de nós, nos permite relacionar com Ele.
Precisamos sair dessa “em-si-mesmice” (Desculpe o palavrão. Quero apenas dizer, foco em si mesmo), para dar lugar à entronização incondicional de Deus. Sobre isso, aliás, já nos ensinou o pastor Renato Vargens, da Igreja Cristã da Aliança em Niterói.
Essa coisa que tem acometido a igreja do Brasil recentemente parece ser ainda eco do que ocorreu lá pelos idos anos 1300 (Séc. XIV), o nascedouro do Humanismo, sobretudo o renascentista. Só que no meio cristão-evangélico, como essa ideia é maldita e repulsiva, ela vem travestida de uma suavização insolente, na proposta de um Deus-Humanista, aliás, pós-humanista. Os “louvores” por aqui têm apenas exposto o que está no imaginário religioso de nossas igrejas: antropocentrismo, hedonismo, otimismo triunfalista, confissão positiva e individualismo.
Humanismo é a filosofia moral que coloca os humanos como principais, numa escala de importância. O humanismo clássico, com se sabe, surgiu para pôr em relevo o homem em contraposição a Deus. No entanto, mais tarde surgiriam ideias que seriam batizadas de “humanismo renascentista”, que firmaria o antropocentrismo sem negar a existência e a superioridade de Deus. A saída para conciliar esse imbróglio foi parir a ideia de um Deus Supremo, passivo, que é radicalmente sensível à Sua própria criação, deslumbrado com o ser humano que tem fé, e que está sempre disposto a dar-lhe tudo que seus devaneios possam desejar.
Assim, o antropocentrismo era a ideia de o homem ser o centro do pensamento filosófico, ao contrário do teocentrismo, que era a ideia de Deus no centro do pensamento filosófico. Mas o que temos hoje é um teocentrismo retórico, neo-humanista, que na verdade entroniza o ser humano, exaltando-o pela sua fé, suas conquistas e suas qualidades.
Humanistas notórios como Gianozzo Manetti, Guilherme de Ockham, Carlos Bernardo González Pecotche, Francesco Petrarca, Pico de La Mirandola e Auguste Comte certamente não teriam ousado tanto. Tamanha ginástica mental e promiscuidade espiritual não eram privilégios de seus tempos.