Uma fotografia compartilhada pelo pastor evangélico Isac Santos, no Facebook, reacendeu uma discussão que perdura por séculos. Na publicação, feita em 22 de agosto, o religioso aparece acompanhado de diversos xavantes no município de Água Boa, em Mato Grosso, e comemora o fato de ter batizado 38 integrantes da aldeia, entre eles o cacique do grupo.

Na imagem publicada na rede social há homens, mulheres e uma criança, todos integrantes da terra indígena de Areões. Eles usam roupas brancas. Ao fundo, o pastor abre os braços e sorri.

A publicação viralizou – eram mais de 16 mil reações e 10 mil compartilhamentos até a manhã desta segunda-feira – e teve repercussão, em grande parte, negativa. A maioria dos usuários utilizou o emoji que expressa raiva para classificar a fotografia. A segunda reação mais popular foi a de tristeza.

Nos comentários, há diversas críticas ao batismo dos indígenas. “Eu peço que Deus ilumine sua cabeça e mostre como é irracional e até pecado o desrespeito à cultura indígena. Jesus não é isso”, escreveu uma mulher, em meio a muitas outras pessoas que também reprovaram a atitude do pastor. Poucos comentários apoiaram a ação do religioso.

Além dos missionários, o batismo dos indígenas também teve a presença da vereadora Aninha Carvalho (SD), do município de Trindade, em Goiás. Em suas redes sociais, a parlamentar publicou imagens dos xavantes e um vídeo no qual aparece ao lado do pastor cantando músicas religiosas para crianças indígenas. Ela também recebeu diversas críticas nos comentários.

O debate sobre a inserção de religiões à cultura dos indígenas é antigo. O assunto existe desde o Brasil Colônia, quando os jesuítas vieram ao país, em 1549, para evangelizar, catequizar e tornar cristãos os indígenas que habitavam as terras brasileiras.

Quase cinco séculos depois, o impacto cultural da religião do homem branco nos indígenas ainda gera debates e causa polêmica. Apesar disso, grupos de diversas religiões continuam frequentando tribos indígenas e conquistando novos fiéis dentro das aldeias.

Para o antropólogo Roque Lara, que há décadas estuda a cultura indígena, as incursões religiosas trazem prejuízo histórico para os indígenas.

“A Constituição brasileira garante aos indígenas o direito de continuar com suas crenças e religiões. Como antropólogo, há muito tempo tenho me manifestado contra missões. É um absurdo que uma pessoa que venha de fora, que não fala a língua do grupo, queira mudar a cabeça deles e as crenças de centenas de anos.”

O batismo de Água Boa

O pastor Isac Santos, da Igreja Tempo de Semear, contou que há mais de um ano conhece o cacique da aldeia onde ocorreu o batismo. Segundo o religioso, os xavantes da região sempre ficam em sua casa quando vão à cidade. Ele argumentou que antes de se converterem à sua religião, os indígenas já haviam adquirido costumes brancos.

“Eles eram convertidos ao cristianismo. Ao contrário do que os ignorantes pensam, na aldeia deles possui energia e televisão. Além disso, os indígenas daquela região têm conta no banco, título de eleitor, Bolsa Família, falam português e fazem faculdade. Eles não ficam dançando ao redor do fogo o dia todo”, disse.

Santos comentou que o batizado foi presenciado por todos os membros da aldeia, incluindo os que não participaram do ato.

A cerimônia ocorreu no Rio Borecaia, em Água Boa. Os indígenas foram ao local com os missionários. Utilizando roupas brancas, eles entraram na água junto com os religiosos. Entoavam canto de sua cultura, em linguagem própria, enquanto os pastores bradavam “aleluia, Jesus” e “glória a Deus”.

Durante o batismo, havia duas duplas de pastores e cada uma delas convidava um indígena por vez. Ao ser chamado, cada um era posicionado pelos religiosos. De costas, eles juntavam as palmas das mãos em sinal de oração e eram colocados durante segundos nas águas do rio. Posteriormente, eram levantados e recebiam aplausos de quem acompanhava a cerimônia.

De acordo com Santos, o batizado é essencial para os indígenas que queiram seguir a religião evangélica. “Se de fato são cristãos, essa decisão precisa ser selada no batismo. Segundo João Batista, isso é feito por imersão nas águas. É preciso crer para ser batizado. Só dei continuidade ao batismo quando pude testificar, de fato, que eles tinham Jesus como salvador. Caso contrário, o procedimento deles seria inválido.”

Ele frisou que os indígenas de Areões foram os únicos batizados pela equipe missionária da qual faz parte. O religioso também salientou que as roupas utilizadas durante a cerimônia não foram exigências e pertenciam a eles, que teriam comprado as vestes para utilizá-las em dias festivos.

Em relação às diversas críticas que recebeu, o religioso as classificou como infundadas. Para ele, os comentários contrários ao batismo foram feitos por “ativistas de teclado”.

“Fazer dos indígenas uma bandeira de ativismo é muito bizarro. Os tratam como bichos, como se fossem incapazes. Os indígenas dizem que podem tomar suas próprias decisões. Eles escolheram a nossa fé. Parece que é crime o fato de eles terem escolhido o cristianismo.”

Santos comentou que reagiu com naturalidade aos comentários negativos feitos em sua publicação.

“No meu Facebook, comenta quem quer. Na minha caixa de mensagem há todo tipo de ameaça. Mas não é disso que se trata a democracia? Eles xingam quem eles querem, eu batizo quem quiser ser batizado”, afirmou.

Sobre a presença da vereadora Aninha Carvalho na cerimônia, o líder religioso explicou que a parlamentar estava a passeio. “Ela foi para pescar com a gente no rio das Mortes. Como descemos para a aldeia, ela nos acompanhou e ainda comprou pães para o lanche e docinhos para as crianças indígenas. Acabou sendo uma bênção.”

A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da vereadora e com a própria parlamentar, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Contato entre tribos e religiosos

O controle de acesso de grupos religiosos a tribos indígenas é feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Por meio de comunicado, a instituição explicou que a entrada de missões em terras indígenas só pode ocorrer com autorização da presidência do órgão ou em caso de as lideranças das aldeias autorizarem a entrada dos grupos.

A Funai informou ainda que não recebeu nenhum tipo de denúncia sobre o caso em Água Boa.

Já no Ministério Público Federal (MPF) existe uma representação contra o batismo que ocorreu na terra indígena de Areões. Em 28 de agosto, a pedagoga Juliani Caldeira protocolou denúncia sobre o caso após ver a publicação feita pelo pastor Isac Santos. O procedimento ainda não entrou em fase de tramitação.

Na denúncia, Caldeira questionou a presença da vereadora Aninha Araújo e dos missionários na aldeia. Ela pediu a abertura de investigação sobre o caso.

“Sendo o Estado Laico e sendo a vereadora representante do povo no seu mandato, teria ela o consentimento para entrar em aldeias, levando a sua cultura para um grupo que já possui a sua própria?”, questionou a pedagoga, em trecho do documento protocolado no Procuradoria.

Cultura

Os xavantes compõem o maior grupo indígena de Mato Grosso. Há cerca de 20 mil deles em diversas regiões mato-grossenses. Eles possuem dez terras no Estado.

Entre as características culturais deles estão rituais que envolvem os processos da vida como nascimento e casamento. Os indígenas desse grupo são ligados a questões de espiritualidade e cultivam segredos sobrenaturais. A língua deles é denominada acuen, do tronco linguístico macro-jê.

Entre os rituais deles, destaca-se o wai’a, no qual apenas os homens participam e repassam conhecimentos tidos como sobrenaturais, relacionados a questões como a vida e a morte, o bem e o mal, a doença e a cura.

Uma das particularidades dos xavantes é a permissão para que os homens possam exercer a poligamia.

Nas últimas décadas, assim como relatado em outras aldeias do país, parte da cultura deles foi suplantada pela religião evangélica ou católica, trazida aos grupos por meio de missionários.

Diversas terras de xavantes deixaram de permitir a poligamia e outros ritos, mantiveram alguns costumes de seus ancestrais e passaram a ser predominantemente católicas ou evangélicas.

O xavante Lúcio Waane Terowaa, de 39 anos, que vive na terra indígena de São Marcos, teme pela perda cultural de seu povo. Filho de pais que decidiram seguir o catolicismo, ele nunca quis ser batizado e optou por preservar a cultura de seus antepassados.

“Nós acreditamos na espiritualidade indígena. Os xavantes creem que existe o mundo espiritual, que nos protege, nos leva a ser pessoas mais tranquilas e faz com que tenhamos convivência harmônica. Só que essas pessoas que estão mais avançadas em outras religiões estão falando mal da nossa. Dizem que a deles está certa. Isso é muito triste”, disse.

“As nossas crenças foram atacadas pela Igreja Católica e pela evangélica. Começaram a falar que não é certo dar continuidade à nossa religião. Isso vem trazendo um grande impacto sociocultural”, completou.

Segundo ele, apesar de diversos grupos terem adotado religiões diferentes, há outros que nunca aceitaram a presença de nenhum tipo de igreja.

“Ao longo dos anos, algumas aldeias foram convencidas, mas nem todas. Algumas delas não aceitam nenhum missionário e mantêm a tradição antiga”, relatou.

Terowaa contou que quase chegou a ser batizado, mas desistiu. “Comecei a pesquisar sobre religião, procurei na internet e percebi que havia algo errado que está dominando meu povo.”

“Na minha opinião, acho que todas as religiões merecem respeito. É triste ver que a igreja invadiu nosso território para evangelizar os indígenas e agora fala mal da nossa cultura. Para mim, não há fundamento para justificar a existência dessas religiões nas aldeias.”

Incursões religiosas

As ações religiosas em terras indígenas de Mato Grosso possuem diversas passagens marcantes. Entre elas está a missão jesuítica de Utiariti, feita por membros da Igreja Católica no município de Diamantino entre os anos de 1930 a 1970. O trabalho envolveu os Nambikwara, Irantxe, Paresi, Rikbáktsa, Apiaká e os Kayabi.

A Utiariti tinha o objetivo de catequizar crianças indígenas por acreditar que elas seriam o meio mais fácil de doutrinação em um período em que havia disputa de terras entre indígenas e seringueiros. Na época, ocorria a reativação de seringais de Mato Grosso, após a Segunda Guerra Mundial.

A missão foi alvo de duras críticas de indígenas, pois no internato onde as crianças ficavam havia distanciamento da cultura nativa delas. No local, os responsáveis somente conversavam em português, passavam apenas ensinamentos católicos e eram raras as permissões para que os pequenos indígenas pudessem visitar suas famílias.

O indigenista Ivar Busatto, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan), comentou que a postura de alguns religiosos assusta pessoas que trabalham com a cultura indígena.

“A gente tem visto na Amazônia, no Sul do País e em outros lugares, que há uma ‘busca’ por essas almas dos nativos, que é um pouco estranha e agressiva. Isso tem nos preocupado. Esse ufanismo por conquista de almas é estranho e causa perplexidade.”

Ele relatou que cada indígena tem permissão para seguir a religião que preferir, conforme determina a Constituição Federal de 1988. Porém, frisou que é importante manter o apreço à cultura de cada povo.

“Todo cidadão, de qualquer etnia, de qualquer lugar do mundo, tem o direito de fazer suas escolhas de linha religiosa. Mas é importante ter respeito às crenças de cada um”, observou.

O antropólogo Roque Lara pontuou que o modo como os missionários agem pode ofender a cultura das aldeias.

“A Constituição diz que a crença dos indígenas deve ser respeitada. O indígena, individualmente, pode mudar de crença, caso queira. Mas o problema é a maneira como as coisas são feitas. Depende do modo como missionário está agindo. Ele pode começar a oferecer bens materiais e o indivíduo acha que é vantagem.”

“Mas, por princípio, os antropólogos defendem as crenças indígenas, da mesma forma que defende que cada um tenha a sua crença e também o direito de não ter nenhuma”, completou.

Lara defendeu que os grupos religiosos que comparecem às aldeias realizem trabalhos sociais, sem coagir os indígenas a seguir determinada crença.

“Há muitos casos de religiosos que desistiram da catequese e passaram a fazer serviço de assistência. Conheci missionário muito bem intencionado, que trabalhava bem e cuidou da população indígena. Mas acho que é importante saber o momento em que ele pode entrar e respeitar”, destacou.

Uma das entidades religiosas que atua em aldeias indígenas do Brasil é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fundado em 1972. A instituição é ligada à igreja católica por meio da Conferencia Nacional Dos Bispos do Brasil (CNBB) e afirma não impor nenhuma crença ao grupo.

O secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzzato, esclareceu que o conselho tem o objetivo de auxiliar causas relacionadas aos indígenas.

“Embora sejamos uma entidade de caráter religioso, nossa atuação junto aos povos não tem perfil proselitista. Defendemos termos constitucionais, segundo os quais os povos têm direito aos seus usos, costumes, tradições e terras que ocupam. A gente apoia esses povos nas demandas que eles apresentam ao Estado brasileiro, para que possam ter condições mais adequadas de vida”, disse.

Ele comentou que ações religiosas do Cimi são realizadas apenas nas aldeias em caso de os próprios indígenas solicitarem.

“Há casos específicos em que os povos passaram por processo de cristianização e que demandam alguns serviços eclesiais. Se há solicitação dos povos e alguns de nossos voluntários têm a possibilidade de responder a esses pedidos, então essas demandas são atendidas.”

Apesar de acreditar que existam entidades religiosas que possam trazer benefícios aos indígenas e não imponham suas crenças ao grupo, o xavante Lúcio Waane Terowaa fez um apelo.

“Para que a gente possa viver neste mundo, cada um deve respeitar o outro. Cada raiz é diferente. Cada cor é diferente. Mas somos todos iguais, somos feitos à imagem única dos seres sábios. Eu preciso que as pessoas ao menos respeitem a gente.”

Fonte: BBC Brasil