Desde a eclosão do mensalão, os escândalos não assumiam de maneira tão escancarada a linha de frente de uma campanha presidencial, relegando ao segundo plano as propostas e as ideias dos candidatos necessárias à correção de rota almejada pela população para a melhoria do bem-estar do povo e das condições do País. A exemplo de 2006, mais uma vez o PT e o governo vão para uma eleição mergulhados em denúncias. A mais grave delas, os desvios bilionários da Petrobras em benefício do PT e de partidos aliados ao governo. E, como num filme repetido, os petistas cumprem um roteiro já bastante conhecido na tentativa de encobrir seus próprios erros. Reagem não só como vítimas, mas imbuídos de certa arrogância, como se pairassem acima dos demais partidos e instituições. Em resposta à divulgação de áudios em que o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Youssef revelam que 3% de todo dinheiro desviado dos contratos da estatal abasteceram o PT e a campanha de 2010, a presidenta Dilma Rousseff acusou a oposição de usar as investigações para dar um golpe no País. “Na véspera eleitoral, sempre querem dar um golpe. E estão dando um golpe. Esse golpe nós não podemos concordar.” Na avaliação da presidenta, as denúncias de abastecimento de seu partido e campanha com recursos drenados da estatal não poderiam ter vindo a público durante o período eleitoral. O mesmo raciocínio, porém, não é aplicado por Dilma quando as acusações envolvem o partido adversário. No debate do SBT realizado na quinta-feira 16, usando dois pesos e duas medidas, Dilma valeu-se de um vazamento da delação premiada de Paulo Roberto Costa para atacar o candidato do PSDB, Aécio Neves. Segundo Costa, o ex-presidente do PSDB, Sérgio Guerra, morto este ano, teria recebido propina para esvaziar uma CPI em 2009. Ou seja, contra o PT, a divulgação dos áudios “é golpe”. Mas, se o mesmo áudio atinge o partido adversário, vira munição eleitoral nas mãos do PT. O ex-presidente Lula discursou na mesma toada da sucessora. Em comício no bairro de Campo Limpo, São Paulo, bradou como se a vítima fosse o seu partido: “Eu já estou de saco cheio (das denúncias contra o PT). Daqui a pouco eles estarão investigando como nós nos portávamos dentro do ventre da nossa mãe”, afirmou Lula.
Ato contínuo, aliados da presidenta Dilma abriram fogo contra o juiz federal Sérgio Moro, responsável pela condução dos processos resultantes da Operação Lava Jato. Como as ações não correm sob sigilo judicial, o magistrado autorizou a divulgação do áudio dos interrogatórios. Na guerrilha virtual, o PT inundou as rede sociais com ataques a Moro. Os militantes o acusaram de transformar a operação em um trampolim para uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal (STF). As agressões não ficaram restritas à rede de computadores. Em protocolos entregues ao Supremo e à Procuradoria-Geral da República, com pedidos de acesso aos autos da Lava Jato, o presidente do PT, Rui Falcão, insinuou que o magistrado não foi cuidadoso com dados da delação premiada, permitindo vazamentos seletivos. O governador do Rio Grande do Sul e candidato à reeleição, Tarso Genro, gravou um vídeo tentando comparar as eleições deste ano às de 1989, quando Fernando Collor venceu Lula com uma série de lances de jogadas sem ética e sem relação com desvios de dinheiro público, como acontece agora.“Isso que está sendo feito é uma manipulação para interferir no voto, é um golpe político em curso. É um golpe contra a democracia, contra a livre manifestação dos eleitores.”
NO PALANQUE DO ATRASO
Em comício em Alagoas, a presidenta Dilma Rousseff discursa ao
lado de Renan Filho, herdeiro do presidente do Senado, Renan
Calheiros (PMDB), e Fernando Collor (PRTB). Hoje, os três são aliados
Em lugar de questionar a intempestividade dos vazamentos e atacar um juiz no exercício de suas funções e prerrogativas constitucionais, o PT e o governo deveriam se dedicar a esclarecer as revelações estarrecedoras. Faz parte do processo democrático, munir o eleitor de informações relevantes para que ele tenha discernimento para decidir sobre quem ele considera mais preparado e em melhores condições para comandar os destinos do País. Portanto, nada mais adequado que o conteúdo dos depoimentos tenha vindo a público no momento em que o eleitor terá de se definir sobre dois projetos para o País: a continuidade, personificada por Dilma Rousseff, do PT, ou a mudança proposta por Aécio Neves, do PSDB. A discussão sobre o momento mais adequado para o vazamento ou não dos áudios não poderia se sobrepor ao gravíssimo teor das revelações do ex-diretor da maior estatal do País. Não se trata do discurso udenista de quem possui mais virtudes para ocupar o Palácio do Planalto, mas do sacrossanto direito do eleitor de poder reunir o máximo de informações disponíveis dos candidatos e respectivos partidos antes da derradeira decisão.
Não por acaso, as associações de classe reagiram prontamente, repudiando a tentativa do PT de tentar tirar a credibilidade do magistrado e do trabalho da Polícia Federal. O ministro Gilmar Mendes, do STF, foi o mais contundente. Tachou de “absurda” a tese que condiciona o andamento do inquérito e dos processos decorrentes da Operação Lava ao calendário eleitoral. “Levantou-se esse mesmo argumento na época do julgamento do mensalão. De tão absurdo, isso chega a ser risível. O Brasil tem eleições a cada dois anos”, disse Gilmar Mendes. “Então, nós vamos suspender os inquéritos e os processos judiciais em períodos eleitorais? Será que vão suspender também o cometimento de crimes? E quanto aos prazos de prescrição, o que fazemos com eles?” Gilmar Mendes realçou que um magistrado pode ser acusado do crime de prevaricação se deixar de executar os atos inerentes à sua função. Lembrou que os incomodados dispõem de um “sistema de proteção” contra eventuais abusos. Queixas contra juízes podem ser protocoladas no Conselho Nacional de Justiça. Abusos de promotores e procuradores podem ser reportados ao Conselho Nacional do Ministério Público. O ministro ironizou. “Estão querendo decretar o fim da independência entre os poderes e inventar um novo recesso para o Poder Judiciário. Teremos de fazer uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral. A Constituição prevê que o processo eleitoral não pode ser modificado um ano antes do pleito. Há incontáveis inquéritos e processos envolvendo políticos. Vamos suspender a tramitação um ano antes de cada eleição ou podemos adotar o período de seis meses? Parece brincadeira.”
As práticas da vitimização não são novas para o PT. Originado do movimento sindical brasileiro no início da década de 80, o partido se especializou em assumir a figura de mártir nas disputas eleitorais. A rotina remonta ao primeiro embate com os tucanos em 1994. Como agora, PT e PSDB disputaram aquela eleição na condição de principais antagonistas. Em desvantagem na refrega devido ao sucesso do Plano Real, idealizado pelo então ministro de Relações Exteriores do governo Itamar Franco e candidato à Presidência, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o PT classificou o plano de “factoide e estelionato eleitoral” criado pelos tucanos, segundo o partido, com não outro propósito senão o de vencer as eleições. O desenlace, no entanto, se deu na contramão da retórica petista. O Plano Real pôs fim à hiperinflação e trouxe a estabilização da moeda, essencial para os avanços sociais conquistados a partir da ascensão de Lula ao poder em 2003. Desde então, porém, o partido parece se recusar a aprender com os próprios erros, preferindo imaginar manobras antidemocráticas toda vez que se vê ameaçado de deixar o Palácio do Planalto.
O histórico dos quase 12 anos de PT no poder expõe um extenso repertório de escândalos que causaram indignação aos brasileiros e a petistas históricos, que abandonaram a agremiação para não compactuarem com o crime. Foram pelo menos 38 escândalos durante a era petista. Parte da energia e do tempo que deveriam ser usados no aprimoramento da administração e gestão públicas foi canalizada para responder a uma série de acusações e inquéritos policiais. O partido, criado em 1980 para representar os trabalhadores e se diferenciar das outras legendas, aos poucos assimilou as velhas práticas da política nacional e viu vários de seus principais representantes serem tragados por casos de corrupção. Como famílias que preferem esconder os problemas para evitar o julgamento público, o PT afagou seus correligionários, alimentando a sensação de impunidade no seu próprio seio. Foi assim com Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma. Afastado em 2006, acusado de quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa, Palocci regressou em 2011 e foi novamente dispensado por não conseguir explicar contratos de consultoria que lhe renderam R$ 20 milhões.
A prática de dar uma segunda chance a envolvidos em corrupção teve seu ápice neste ano. Dilma Rousseff começou o governo em 2011, dando a impressão de que mudaria o quadro ao faxinar da Esplanada seis ministros alvos de denúncias. O selo de faxineira dos “malfeitos”, no entanto, caiu por terra quando ela reabilitou ministros que saíram sem explicar irregularidades. Paulo Sergio Passos – secretário-executivo à época em que Alfredo Nascimento foi apeado do cargo – voltou graças à necessidade de Dilma de recompor com o PR. O mesmo ocorreu com o ministro Carlos Lupi. Ele saiu da pasta do Trabalho sem conseguir justificar suas relações com ONGs que mantinham convênios fraudulentos com a pasta e explicar a indústria de criação de sindicatos. Mesmo assim, continuou dando as cartas e emplacou Manoel Dias como sucessor, na cota do PDT. Os episódios registram que o PT decretou a falência moral dos seus governos em nome de um arranjo político que sustenta o grupo instalado no poder. Ao construir uma base artificial, atraída por promessas de aparelhamento de ministérios e estatais, o PT também ficou refém de aliados. O depoimento do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa à Justiça Federal do Paraná ilustra bem essa situação. O PT e os partidos da base se apoderaram dos órgãos públicos e, em vez de apoio político, passaram a formar um exército alimentado à base do fisiológico toma lá dá cá político.
Apesar da série de equívocos cometidos em mais de uma década, o PT nunca admitiu erros ou fez mea-culpa. O mensalão levou para a cadeia os principais nomes da legenda e, até hoje, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva trata o episódio como uma grande perseguição orquestrada pelo Judiciário, a imprensa e legendas da oposição. A constante negação dos problemas teve repercussão social e no interior do próprio partido. Grupos de diferentes segmentos ideológicos e econômicos passaram a pregar o “voto anti-PT”, associando o partido a práticas de corrupção e ao aparelhamento do Estado. O antipetismo cresceu na sociedade disseminado não apenas por oposicionistas históricos do partido, mas por pessoas que votaram uma, duas, três vezes na legenda e, hoje, encontram-se desiludidas. No primeiro turno das eleições presidenciais, análises do diretório nacional do PT detectaram que um terço dos votos válidos, o equivalente a 34 milhões, se basearam no sentimento de desaprovação à legenda. Os “antipetistas” se dividiram entre Aécio Neves e Marina Silva. No segundo turno, esse movimento voltou com toda a força, segundo as mais recentes pesquisas.
DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS
Dilma valeu-se do vazamento do áudio da delação de Paulo Roberto Costa,
classificado anteriormente por ela de “golpista”, para tentar atingir o candidato
do PSDB, Aécio Neves. Segundo Costa, Sérgio Guerra, ex-presidente do
PSDB, teria recebido propina para abafar uma CPI contra a Petrobras
O PT não pode acusar seus eleitores de traição. Antes mesmo do crescimento da rejeição na sociedade civil, a legenda sofreu defecções no interior da própria legenda. Desencantados com os rumos do partido, históricos fundadores puxaram o adeus ao PT. Entre eles, os políticos Chico Alencar, Milton Temer, Heloisa Helena e o jurista Hélio Bicudo. Aos 92 anos, Bicudo vive hoje a desilusão de ver o partido que ajudou a fundar, e do qual se desfiliou em 2005, ser desfigurado por abandonar princípios éticos que defendeu fervorosamente antes de se tornar governo. O PT perdeu Hélio Bicudo e com ele parte de sua história e um dos quadros mais respeitáveis na luta dos direitos humanos e da intelectualidade do direito brasileiro. “Hoje, o PT, infelizmente, gosta de aparecer como vítima: vítima da mídia, vítima de uma traição, de um poder que quer se apoderar do que está nas mãos dele”, lamentou.
Há 34 anos, o “nós” a que o PT se referia eram os trabalhadores e o “eles”, os políticos tradicionais, flagrados em esquemas de corrupção. O selo de legenda criada para servir ao povo inspirou um slogan que virou hit durante a primeira eleição de Lula: “No fundo, no fundo, todo mundo é um pouco PT”. A exaltação que hoje pode causar arrepios em muitos fazia sentido e despertou um sentimento de união que culminou com a eleição do líder operário para a Presidência.
Hoje, “o nós contra eles” ainda está presente no discurso, mas os personagens mudaram. O “nós” representa o partido, não mais os trabalhadores, e o “eles” retrata uma indefinível gama de adversários, sem deixar claro se os inimigos pertencem a um grupo econômico específico ou a uma categoria social. O “eles” da década de 1980 agora são aliados políticos e apoiadores do PT, a exemplo da família Sarney e do próprio Fernando Collor, adversário de Lula em 1989.