“Porque não morri ao nascer? Por que não expirei ao sair do ventre? […] ou por que não fui oculto no chão como um aborto, como uma criança que nunca viu a luz?” (3.11, 16).
Pobre Jó! O homem cuja paciência é tão citada e admirada, na verdade, por muitas vezes a perdeu completamente. É tola a tentativa moderna de querer transformar Jó num sofredor resignado. Ele nunca o foi. É verdade que em um momento declarou: “O Senhor deu e o Senhor o to¬mou; bendito seja o nome do Senhor” (1. 21), mas também é verdade que em outros momentos ele reclamou de Deus:”Clamo a Ti, ó Deus, mas não me respondes; ponho de pé, mas para mim não atentas. Tomas-te Cruel para comigo; com a força da tua mão me atacas” (30.20, 21).
Jó não compreendia o que estava acontecendo, afinal tudo aquilo não tinha lógica. A pergunta “porque estou sofrendo?”, que ecoava de sua alma, refletia o seu conflito. O homem de Uz que no passado considerava-se protegido e guiado por Deus, que era farto e próspero e cuja vida fora respeitada por jovens, anciãos, príncipes, pobres, viúvas, órfãos, necessitados, estrangeiros, além de ser temido pelos inimigos (29. 1¬-25). Ora, este homem que outrora tão importante e destacado fora, no presente amarga o desprezo de muitos que o conheciam (30.1-31). Jó, que estava sendo provado por Deus, não suportando seu sofrimento amaldiçoa o próprio nascimento: “Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem!” (3.3).
Jó sentia-se afligido por Deus. Sentia-se entrincheirado sem ter por onde escapar. Vejamos a sua agonia:
“Sabei que Deus é quem me oprimiu, e, com sua rede, me cercou. Embora eu clame: Violência! Não sou ouvido; embora grite por socorro, não há justiça. O meu caminho Ele entrincheirou, e não posso passar; nas minhas veredas pôs trevas. Da minha honra me despojou, e tirou da minha cabeça a coroa; quebra-me de todos os lados e eu me vou; arranca a minha esperança, como a uma árvore. Faz inflamar contra mim a sua ira, e me considera como um de seus inimigos.Juntas vêm as suas tropas; preparam contra mim os seus caminhos, e se acampam ao redor da minha tenda. Pôs longe de mim a meus irmãos; os que me conhecem torna¬ram-se estranhos para mim. Os meus parentes me aban¬donaram; os conhecidos se esqueceram de mim. Os meus domésticos e as minhas servas me têm por estranho; vim a ser estrangeiro aos seus olhos. Chamo a meu criado, e ele não me responde; tenho de suplicar com a minha boca. O meu hálito é intolerável à minha mulher; sou repugnante aos meus próprios irmãos. Até os pequeninos me desprezam; levantando – me eu falam contra mim. Todos os que eu amava se tornaram contra mim” (19. 6-19).
Estas não são palavras de um homem equilibrado, paciente e resignado, e sim de alguém totalmente furioso e esgotado, à beira do precipício emocional. Ele sentia-se injustiçado por Deus, abandonado pelos amigos e parentes, incompreendido por Elifaz, Bildade e Zofar que não fizeram outra coisa senão acusá-lo. O rancor tomou conta de seu coração: “Por que não morri?” Sua pergunta reflete a sua ira, sua inconformidade e seu deses¬pero.
Gosto deste Jó! Seu drama é semelhante aos nossos no que diz respeito à incapacidade de reagir com serenidade aos conflitos da vida, principalmente quando sua causa é sem sentido e misteriosa.
Gosto de Jó porque ele não finge um estado de contentamento; porque não tem medo de expor sua raiva e discordância quanto aos eventos trágicos que lhe sobrevieram; gosto de Jó porque ele não é um holograma, uma miragem, uma abstração; gosto de Jó porque ele é humano; porque sabe chorar e sentir dor; gosto de Jó porque ele se revolta; gosto de Jó porque ele não passa um verniz espiritual em seu rosto; gosto de Jó porque ele é sincero com Deus e Deus o entende; gosto de Jó porque ele se parece comigo; gosto de Jó não por causa de sua paciência e sim pela sua impaciência, sua luta com Deus, seu desabafo e seus desaforos. Jó esperava “grandes coisas” da parte de Deus e, quando, ao invés dessas grandes coisas, o que veio foi derrota, morte, luta, prostração e dor, ele se fere, assim como acontece também conosco. Gosto de Jó porque me identifico com ele, pois sua reação é parecida com a de milhares de crentes que também choram e sangram machucados com as provações que encaram no caminho da fé.
Jó é um belo e clássico exemplo de que as Escrituras Sagradas não omitem a fragilidade dos eleitos de Deus. A Palavra de Deus expõe tanto a virtude como a fraqueza dos homens de fé. Se as Escrituras apresentassem apenas um Jó concentrado, calmo, paciente e esperançoso, ele seria inatingível do ponto de vista humano. Ele seria inaccessível à maioria dos mortais e, com certeza, seu testemunho nos envergonharia, pois ficaríamos decepcionados conosco por não conseguirmos reproduzir sua reação heroica.
Precisamos aprender a lidar com a nossa humanidade, pois é a nossa natureza; com os nossos erros, pois os come¬temos; com as nossas dúvidas, pois as temos. Afinal, como disse Philip Yancey, “onde não houver espaço para dúvida, também não haverá espaço para fé”. Precisamos entender que Deus não retira o seu favor quando não alcanço o ideal cristão de comportamento (se é que existe algum). A nossa forma de olhar para os nossos irmãos, infelizmente, ainda é católico-romana e não ju¬daico- cristã – protestante. O catoli¬cismo romano insiste na ideia de santos que viveram uma vida sem pecado enquanto estiveram na terra (como a “imaculada” Maria, por exemplo). A tradição judaico-protestante, no entanto, à luz das Escrituras, reconhece os modelos de fé sem, contudo, lhes tirar a humanidade, a fraqueza e a dúvida. O autor de Hebreus, por exemplo, no capítulo 11, não titubeia em apresentar um bêbado, um mentiroso, um trapaceiro, um covarde, um lascivo, um adúltero e assas¬sino, uma prostituta (entre outros), como homens e mulheres de fé grandiosa, mas que em algum momento de suas vidas, por circunstâncias diversas, fracassaram na conduta moral, e, ainda assim, Deus os amava.
As Escrituras poderiam apresentar muito bem um Jó distante do sofrimento e imune a própria revolta, porém sendo “O Livro de Deus”, o apre¬senta como realmente é: santo e pecador; paciente e impa¬ciente; resignado e descontro¬lado; cheio de fé e esvaziado dela. isto é, “Simul Justus et Peccator” (ao mesmo tempo justo e pecador), como muito bem sentenciou Martinho Lutero ao definir a condição dos verdadeiros homens de Deus. A vida de Jó mais do que um exemplo é um consolo, pois revela um Deus amigo e misericordioso que compreende o destempero humano. É digno de nota que Deus, quando enfim entra no debate com Jó, não o acusa (38. 2-41.34). Deus o repreende, mas não o condena. Apesar da explosão de ira e das acusações feitas por Jó, Deus não o maltrata, pois conhecia o seu servo querido, sabia que as duras palavras proferidas partiam de um coração cansado por tanta dor e desprezo. Deus conhece a nossa estrutura (Sl 103.14).
Jó tentou, mas não conseguiu reagir com fé e temperança todo o período da crise. Ele falhou, mas Deus não se importou com suas falhas. A opinião de Deus a nosso respeito não muda quando fracassamos. É claro que a proposta de Deus para nós é uma vida de retidão e santidade (Hb 12.14); Deus quer que andemos em suas veredas justas (Sl 23.), pois não se agrada do pecado (Is 59.2). Entretanto, quando erramos Ele está no mesmo lugar onde sempre esteve oferecendo perdão e a chance para recomeçar (1 João 1.9 – 2.2). Ele nos ama e o que nos basta é a sua graça (2 Co. 12.9). Fiquemos com o sábio conselho do jovem Eliú quando insistiu com Jó a confiar na maravilhosa graça e no perdão de Deus:
“Pequei e perverti o direito, mas não fui punido como merecia. Deus livrou minha alma de ir para a cova, e viverei para ver a sua luz. Tudo isto é obra de Deus, duas a três vezes para o homem, para desviar a sua alma da perdição para que a luz da vida brilhe sobre ele” (33.27-30).
Jó saiu de sua provação com uma nova impressão de Deus; o Senhor agora lhe era real: “com os ouvidos ouvira falar de Ti, mas agora te vêem os meus olhos. Por isso me abomino, e me arrependo no pó e na cinza” (42.5-6). Jó compreendeu pela experiência que Deus é a fortaleza dos fracos, o refúgio dos cansados; aprendeu que até os retos e íntegros também sofrem; aprendeu que mesmo que sejamos infiéis Ele permanece fiel; aprendeu que na nossa impaciência, Ele mantém sua paciência conosco; aprendeu que mesmo na dor podemos encontrar a Deus; aprendeu que é na escuridão que a luz de Deus mais faz sentido para nós e aprendeu que Deus propõe um caminho para o homem e que Ele não recua enquanto os seus não chegam do outro lado (42.2).
Tudo isto Deus faz com homens que nada mais são do que vasos de barro; podem ser de honra, como Jó, mas, ainda assim, são de barro; que são de valor, como Jó, mas podem se quebrar, se rachar, se ferir, como Jó. Sim, vasos de barro. Sempre vasos de barro,“para que a excelência do poder seja de Deus e não nossa” (2 Co. 4:7). Amém!
Idauro Campos é Pastor Congregacional, Mestre em Ciências da Religião e Colunista do GENIZAH.