Mais à frente vou relatar uma experiência que se não fosse trágica seria cômica. Antes, porém, quero compartilhar "o que" e "como" poderiam ser os nossos cultos ou reuniões congregacionais. Os conceitos de culto de louvor, culto evangelístico ou culto de oração, tarde do milagre, noite de curas não são bíblicos. Não deveríamos marcar hora e local para Deus fazer aquilo que queremos que Ele faça. Por outro lado, também não precisam ser vistos como aberração nem "coisa do diabo"; são apenas formas que criamos para cultuar dentro do mínimo de tempo de que dispomos – embora eu ainda ache que há sérios equívocos nisso. O culto deve ter momentos de júbilo, louvor e dança, adoração, pregação da palavra de Deus, testemunhos e tempo para comunhão, quando os presentes saem dos seus lugares, conversam, riem, oram e comem juntos. Tudo dependendo de nossa disponibilidade em gastarmos tempo para estar juntos.
Um bom conceito de culto público pode ser definido como um conjunto de gestos e palavras codificados, de valor simbólico, próprio de um determinado grupo cultural, que expressa a devoção a uma divindade – no caso dos cristãos o relacionamento, a devoção e o amor ao único Deus, YHWH.
Encontramos um conceito modelar de culto em 1Co 14:26-40, onde Paulo propõe a participação alegre e enriquecedora dos irmãos, no estímulo às manifestações da graça de Deus experimentáveis pelo exercício dos dons e talentos conferidos pelo Espírito Santo.
“Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação (…) Mas faça-se tudo decentemente e com ordem.”
É forte no pensamento religioso o sentimento de que a pessoa que agrada a Deus é aquela que não falta aos cultos e procura cumprir uma lista de regras e mandamentos. Da mesma forma, é forte também o pensamento de que a pessoa que desagrada a Deus, resumidamente, é aquela que não frequenta as reuniões de sua congregação e não se envolve no conjunto de normas internas e eventos promovidos pela igreja.
Entretanto, se atentarmos bem, este cenário remonta o sistema farisaico tão criticado por Jesus. Nenhuma prisão é tão forte quanto o sistema de obrigações religiosas. Devemos nos lembrar de que uma das lições mais importantes que Jesus ensinou a seus discípulos é que parem de buscar a vida que vem de Deus por meio de rituais e obrigações religiosas. Jesus não veio para criar nem melhorar uma religião; veio para convidar-nos a um relacionamento com ele.
Portanto, o culto deve encerrar a ideia de estilo de vida. O “momento de culto”, como conhecemos, em um local (templo) e com hora marcada, deve ser compreendido como oportunidade de prestigiar a presença de outros de mesma e fé e prática, e aproveitar essa inigualável experiência para crescimento mútuo.
(Romanos 12:1) – “ROGO-VOS, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.”
Agora vamos ao fato trágico e nada cômico. Em fevereiro de 2010, participei de um culto dirigido por um profeta, no auditório de uma escola pública da Asa Sul, em Brasília. O contexto era de um retiro de carnaval. O profeta retirou as sandálias e sentou-se no chão da plataforma à frente. Com o microfone em punho conversava naturalmente com os ouvintes, citando de cor textos bíblicos e trazendo a sua visão acerca destes. Contudo, no decorrer do trabalho, o lugar foi sendo tomado por uma atmosfera de mistério, induzido por chavões como “Deus quer fazer algo especial aqui…” e “Você nunca mais será o mesmo depois que sair deste lugar…”.
O profeta fazia longas pausas nas suas falas e depois balbuciava palavras como se as tivesse acabado de recebê-las no ouvido, como recados de Deus. Em seguida, olhou para uma grande janela à sua direita e disse que em minutos entraria um vento que encheria aquele lugar do poder de Deus, e que quando acontecesse todos seriam alcançados por graça tão especial que começariam a falar em outras línguas, num batismo coletivo e irresistível do Espírito Santo.
O que aconteceu em seguida é fácil deduzir (o tempo estava fresco no início da noite e o tal vento veio mesmo). Foi um alvoroço de gritos, pessoas caídas no chão, rodopios e choros histéricos, que durou cerca de 10 ou 20 minutos. Em seguida, recompostos os presentes (?), mandou o pregador que trouxessem água em copos e jarros, intercalando leituras bíblicas aparentemente desconectadas com histórias e testemunhos.
A água chegou pelas mãos de alguns obreiros e fez-se um “ato profético”. Sob a orientação detalhada do profeta, todos teriam de beber um pouco daquela água com fé para serem cheios do Espírito Santo, para experimentarem o que ocorrera em Atos 2. Fizeram então passar alguns copos de mão em mão, e todos bebiam do mesmo copo que ia passando, suado e babado, pela crença pia de que esse ato lhes transmitiria alguma virtude. O que se via desde então eram pessoas caindo novamente, dançando, ajoelhadas ou deitadas no chão (aparentemente inconscientes). A tudo eu observava cético e atônito, sem me envolver. Por vários momentos pretendi sair daquele local, mas por algum motivo – provavelmente curiosidade – preferi ficar, para ver no que iria dar aquele negócio.
Não satisfeito, o pregador pegou uma jarra com aquela água “ungida” e aspergiu da plataforma em todos os presentes, com a promessa de que seriam inundados com o poder de Deus. Em seguida, inacreditavelmente, houve outra previsão de que, agora da janela da esquerda, viria outro vento para encher o local do assombro e da graça do Senhor.
Neste momento, lembrei-me dos dizeres de Pedro em 2Pe 2.2: “Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo.”
Pedro, depois de ter sido amorosamente tratado por Jesus, chegou a essa sublime e madura conclusão. Ele associou o crescimento saudável do crente ao leite (alimento) racional que se deve desejar.
Precisamos de discernimento, não apenas porque o obreiro cristão hoje está cercado de espiritualidades falsas, mas porque muito do que passa por cristianismo evangélico é apenas verniz das coisas espirituais. (Paul Stevens, 1998)
Ah, irmãos, como lamentei tanto afastamento da Palavra… O Evangelho é tão simples. É claro que a presença singular e poderosa do Senhor, Criador do Universo, Todo Poderoso, pode nos causar abalos. A estrutura humana é deveras frágil para suportar tão grande e inimaginável poder. Todavia, não podemos nos entregar ao ponto de ver roubada a nossa lucidez, não podemos estar absortos seja onde for e isso inclui os nossos mais elevados momentos de culto ao Senhor. A nossa racionalidade é também item da criação do Senhor, não é algo das mãos de homens ou mesmo de demônios, que devamos nos abster para a aproximação com o Deus que adoramos. Antes devemos nos aproximar do Pai completos, e excluir a racionalidade desse conjunto é tornarmo-nos incompletos, capados, aleijados diante do Pai.
Assim, devemos atentar diligentemente para tudo o que fazemos, em atitude sóbria de verdadeiro culto racional (seja no templo ou fora dele), especialmente em momentos de cultos, justamente pelo apelo emocional que pode produzir. Algumas vezes podemos experimentar fortes emoções e confundi-las com a genuína presença de Deus. A presença de Deus emociona, [des]estrutura, abala, envolve, mas nem toda emoção pode ser atribuída à manifestação de Deus.