O falar em línguas: o sinal audível da graça invisível
Os sacramentos são sinais visíveis e sensíveis que mediam realidades invisíveis. É indiscutível que os cristãos evangélicos estão redescobrindo a importância dos sacramentos, ou melhor dizendo, dos “sinais visíveis da graça” nas cerimônias públicas. Isso porque a liturgia protestante ainda é essencialmente cerebral. Infelizmente, o protestantismo se contenta em alimentar a razão, enquanto esquece a complexa integralidade humana (imaginação, emoções, sensações etc.). Quantas vezes o culto protestante se assemelha a espécie de TED (1) com louvores?! Como escreveu Robinson Cavalcanti, o nosso culto evangélico é antiarte, antilúdico, anti-imaginativo, onde nos reunimos em “quatro paredes caídas com um sermão” (2).
Também, é inegável que os pentecostais clássicos sempre desprezaram a ideia de rituais litúrgicos, embora, mesmo não admitindo, sejam adeptos de algum ritualismo (unção com óleo, orações de consagração do pão e do vinho na Ceia, orações específicas pela cura divina, imposição de mãos, leitura coletiva da Palavra, etc). Parte dessa ojeriza pelo sacramento no pentecostalismo é influência direta do zwinglianismo protestante e do fundamentalismo norte-americano e, também, infelizmente, porque as igrejas marcadas pela liturgia caíram naquele mero formalismo de etiqueta tão condenado pelas Escrituras. Assim, na tradição pentecostal, a liturgia ficou com a pecha de ritualismo vazio.
Curiosamente, essa postura antipática ao sacramento ou “sinal da graça”, em um contexto mais amplo, reflete, também, a mesma desconfiança do modernismo: o ritual seria algo irracional, supersticioso e papista. Diante desse cenário, nada resta senão o culto à razão. Só que os protestantes não perceberam que o racionalismo moderno é tão prejudicial quanto o sentimentalismo místico – e igualmente antibíblico. Outro ponto importante, diferente do cenário da Reforma do século XVI, não estamos vivendo nos contextos religiosos da atualidade a proeminência da mentalidade mágica e do excesso de sagrado, excetuando, é claro, essa espiritualidade difusa da modernidade líquida. Pelo contrário, o avanço do liberalismo teológico associado ao secularismo tem jogado o sagrado para “debaixo do alqueire”. O protestantismo, no lugar de reagir ao racionalismo moderno, ao contrário, mesmo em suas expressões conservadoras, se jogou fundo no culto à razão. Não é à toa que a preocupação litúrgica entre os evangélicos se resume, até hoje, em questões que envolvem tão somente a mensagem do sermão e a mensagem da música. Como isso, o protestantismo tem falhado ao comunicar o Evangelho porque, como filho da modernidade, pensa que está lidando apenas com pessoas racionais e despreza os aspectos gerais do homem (razão, emoção, vontade, paixão etc.). Tragicamente, a Bíblia, mesmo pelos protestantes conservadores, é apresentada como um compêndio de informações sobre Deus e não como a voz viva do Senhor do Universo (3). Uma forma de superar essa comunicação racionalista é pela volta dos sinais sacramentais.
O batismo nas águas é motivo de muita controvérsia no seio do cristianismo. A Igreja Católica e muitas igrejas protestantes batizam crianças. Outras igrejas associam o batismo nas águas com uma profissão de fé, algo que não pode ser feito conscientemente por um bebê. Ainda há a controvérsia da forma: o batismo é por imersão ou aspersão? Outro ponto: o batismo é feito em nome da Santíssima Trindade ou se destaca em particular o nome de Jesus? A discussão é infinita. Mas, em todos os casos, a administração do batismo é feita pela igreja. No batismo no Espírito Santo é diferente. “A igreja não administra o batismo no Espírito; em vez disso, o batismo do Espírito administra a igreja”, como lembra o teólogo pentecostal Frank Macchia (4).
O batismo no Espírito, como uma experiência de sacramentalismo sobrenatural, demanda um sinal externo. Somos mergulhados no Espírito Santo por Jesus Cristo para que possamos sair dessa experiência vestidos de coragem e intrepidez no anúncio vocativo do Evangelho. Sim, não é à toa que os pentecostais associam o falar em línguas e, algumas vezes, a profecia, como sinais do Batismo no Espírito. Ambos são dons de elocução e marcam, dessa forma, a lembrança que o revestimento de poder serve como capacitação espiritual do cristão como anunciante do Evangelho. Não é uma experiência pela experiência, ou seja, não é misticismo, no sentido pejorativo do termo, mas é uma experiência missiológica, um impulso à obra de evangelização. É, também, um sinal que Deus está conosco nessa missão.
A glossolalia dá um significado mais profundo ao nosso vocabulário limitado. É um tipo de sinal que não pode ser controlado pelo clero e nem mesmo pelo pelo leigo. É uma dimensão que não despreza a razão, mas a supera. “E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis”, como disse Paulo aos romanos (8.26). Diante disso, sempre vem pergunta: o sinal é realmente necessário? Embora não seja obrigatório, o sinal é naturalmente necessário. Há quantos séculos a Igreja Cristã tem cultos litúrgicos cheios de sacramentos, músicas e imagens mostrando a importância dos sinais visíveis para encarnar as realidades invisíveis? (5)
João Calvino definiu sacramento como “um símbolo externo com o qual o Senhor sela em nossas consciências as promessas de sua benevolência para conosco, a fim de dar sustentação à fraqueza de nossa fé e de que testemunhemos, por nossa vez, diante dele e dos anjos e entre os homens, nossa reverência para com Ele”. Diante desse conceito, o falar em língua enquanto sinal corriqueiro do Batismo no Espírito Santo, tem a força de um sacramento. Embora, seja não um sacramento palpável, o falar em língua tem a “forma visível (ou audível) de uma graça invisível” (6). O falar em línguas, enquanto sinal, sempre desperta a memória da congregação que o Espírito Santo nos capacita a anunciar o Evangelho (7). Assim como o Espírito nos dá o falar em línguas de maneira sobrenatural, o Senhor Jesus, da mesma forma, nos dará as palavras de anúncio do Seu evangelho mediante a Sua graciosa vontade. Jesus mesmo disse: “porque eu vos darei boca e sabedoria a que não poderão resistir, nem contradizer todos quantos se vos opuserem” (Lucas 21.15).
Portanto, a liturgia, para não cair no formalismo, precisa de ritos onde a plenitude dos sentidos encontre espaço, ou seja, onde Deus se comunica conosco pelo Espírito. Na liturgia viva, sim, a presença de Deus é sentida, não como arrepio ou êxtase, mas como senso real de que servimos a um Deus vivo. A liturgia autêntica tem a emoção compartilhada pela comunidade ao comungar os mesmos gestos, alegrias e expectativas. É uma liturgia de relação vertical, onde o Espírito Santo se faz presente com seu constante derramar. É no espaço do culto, portanto, quando o Espírito concede a graça dos dons para a edificação da igreja. Porém, mesmo a glossolalia enquanto sinal da presença ativa de Deus, se tomada como em sua forma externa mais importante do que ela aponta, que é o anúncio do Evangelho, será uma tragédia de vaidades e pensamentos mesquinhos. A sacramentalidade pentecostal não pode perder de vista que a estamos diante de uma interação constante entre o conhecimento e a experiência vivida, entre o aprendizado sobre Deus e a experiência de Deus – e um depende do outro perpetuamente.
Referências:
(1) “TED (acrônimo de Technology, Entertainment, Design; em português: Tecnologia, Entretenimento, Planejamento) é uma série de conferências realizadas na Europa, na Ásia e nas Américas, incluindo o Brasil, pela fundação Sapling, dos Estados Unidos, sem fins lucrativos, destinadas à disseminação de ideias – segundo as palavras da própria organização, ‘ideias que merecem ser disseminadas’”. (Wikipédia)
(2) CAVALCANTI, Robinson. A Igreja, o País e o Mundo. 1 ed. Viçosa: Editora Ultimato, 2000. p 36.
(3) Para uma crítica poderosa contra essa ingenuidade racionalista do protestantismo, veja: SMITH, James K. A. Você é Aquilo que Ama. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2017.
(4) MACCHIA, Frank D. Baptized in the Spirit: a Global Pentecostal Theology. 1 ed. Grand Rapids: Zondervan, 2006. p 402.
(5) Para uma defesa exegética da necessidade do sinal externo na teologia lucana do Espírito veja: MENZIES, Robert. Pentecostes. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2016. p 57-84.
(6) CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã: Tomo 2. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p 692.
(7) Não pretendo inventar a roda ao associar o sacramento com sinal miraculoso. O reformador luterano Filipe Melâncton já tinha feito o mesmo no livro Loci communes de 1521. Veja: WENGERT, Timothy J. Dictionary of Luther and the Lutheran Traditions. 1 ed. Grand Rapids: Baker Academic, 2017. p 654.