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‘Minha família está morrendo de fome na Venezuela’: mais de 3 mil indígenas warao buscam vida melhor no Brasil

  • Thais Carrança – @tcarran
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Indígena venezuelano Eulirio Baes sentado numa rede, cercado de cinco crianças de diferentes idades

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO ACNUR

Legenda da foto,Eulirio Baes, líder warao da Venezuela, em centro de triagem que recebe venezuelanos na cidade fronteiriça de Pacaraima (RR)

“Falar sobre a Venezuela me deixa com vontade de chorar. Minha família está passando fome agora e começaram a morrer… Estão morrendo adultos e crianças, e não é pela enfermidade de coronavírus, estão morrendo de fome. De fome!”

“Eles me pedem apoio quase todos os dias. Sempre ajudo, mas é uma grande quantidade de gente que me pede: ‘Me manda R$ 100’, ‘Me manda R$ 50’. Muitos estão pedindo, mas eu não tenho dinheiro.”

“Nos caños (afluentes do rio Orinoco), está morrendo gente, está se acabando tudo, acabando roupa, acabando sal, eu não sei como, daqui em diante, não sei como vai ser.”

O relato é de um homem venezuelano de 49 anos da etnia indígena warao e foi colhido em Ananindeua, no Pará, pela Acnur (Agência da ONU para Refugiados).

Os primeiros imigrantes warao chegaram ao Brasil em 2014. Mas esse movimento se intensificou a partir de 2016, com o agravamento da crise na Venezuela.

Os indígenas deixam seu país de origem diante do desabastecimento de itens básicos, da hiperinflação e do aumento da violência, com a ação de grupos armados nos seus territórios, devido ao avanço da mineração na região do Arco Mineiro do Orinoco.

Em 2014, eram pouco mais de 30 warao no Brasil. No início de 2017, já somavam 600 indivíduos. Em março do ano seguinte, o número havia dobrado para 1.200 e, em dezembro do ano passado, a estimativa era de 3.300 indígenas da etnia vivendo em território nacional.

Para se ter uma ideia da relevância de uma comunidade indígena desse tamanho, o Brasil somava 252 povos indígenas em 2016, segundo levantamento do ISA (Instituto Socioambiental). Desse total, apenas 97 povos tinham mais do que mil pessoas.

Três mulheres warao fazem artesanato, uma delas tem um grande sorriso e uma criança apoiada no ombro

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO ACNUR

Legenda da foto,Mulheres indígenas warao recebem treinamento para transformar artesanato em renda

João Fellet tenta entender como brasileiros chegaram ao grau atual de divisão.

A maioria dos warao que vive no Brasil se sustenta pedindo dinheiro nas ruas. Para eles, essa não é uma prática constrangedora ou indigna, mas uma adaptação ao ambiente urbano das práticas de coleta que realizavam em seus territórios para garantir o sustento da comunidade.

Para tratar dessas e outras particularidades desse novo grupo crescente de imigrantes, e dar subsídios ao poder público para realizar adequadamente a acolhida a eles, a Acnur está lançando nesta quinta-feira (15/4) um amplo estudo sobre a presença warao no Brasil.

No país, além da vulnerabilidade extrema, essa população enfrenta a barreira linguística – no geral, esses imigrantes falam warao como primeiro idioma e espanhol como segundo, desconhecendo o português. Também têm dificuldade para se inserir na economia, devido ao baixo nível de instrução escolar e elevado índice de analfabetismo.

“As barreiras que um refugiado enfrenta duplicam quando se trata de refugiados indígenas”, diz Sebastian Roa, coordenador da resposta indígena venezuelana da Acnur no Brasil.

Um povo em deslocamento, mas não nômade

Os warao são a segunda maior etnia indígena da Venezula, com a população estimada em 49 mil pessoas pelo Censo de 2011, atrás apenas da etnia wayuu (Guajiro), a maior do país vizinho, com 413 mil indivíduos.

Na Venezuela, o povo warao vive principalmente no Estado de Delta Amacuro, no Nordeste do país, onde o rio Orinoco deságua no oceano Atlântico, e em partes dos Estados de Monagas e Sucre.

Mapas mostram a localização da Venezuela nas Américas e os Estados venezuelanos de Delta Amacuro, Monagas e Sucre

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO ACNUR

Legenda da foto,Localização dos territórios warao na Venezuela

O processo de deslocamento dos warao dentro da Venezuela tem início ainda na década de 1960, como resultado de um malsucedido projeto desenvolvimentista do governo venezuelano de represamento de um dos rios do delta do Orinoco para estímulo à agricultura.

Como resultado da deterioração ambiental causada pelo projeto, muitos warao tiveram seus meios de subsistência prejudicados e as terras invadidas por agricultores e pecuaristas não indígenas. Com isso, passaram a buscar nas cidades trabalho e recursos para sua sobrevivência.

Nos anos 1990, o território warao seria novamente devassado por um projeto petrolífero e por uma grave epidemia de cólera, que mais uma vez estimulou o deslocamento dos indígenas rumo aos centros urbanos, em busca de atendimento de saúde.

“Esses deslocamentos passam a ocorrer no século 20 como resultado de diferentes intervenções no território de origem”, observam os pesquisadores, no estudo produzido pela Acnur.

“Trata-se de um processo de mudança social e cultural decorrente de relações de poder e dinâmicas políticas e territoriais, que não tem nada a ver com nomadismo”, destacam.

No período recente, foi a crise econômica, política e humanitária na Venezuela que incitou novamente o deslocamento dos warao, agora para fora do país.

Até agosto de 2020, o Brasil já havia recebido mais de 264 mil venezuelanos, entre refugiados e migrantes. Desse total, cerca de 5 mil são indígenas, 65% deles, da etnia warao, segundo dados da agência da ONU.

Por aqui, a presença warao foi primeiro identificada em Roraima, se espalhando nos anos seguintes para Amazonas e Pará.

Em 2020, através de seus deslocamentos, esses indígenas já estavam presentes em 75 cidades, das cinco regiões brasileiras.

Coleta de dinheiro, não mendicância

“Esta cidade, o Brasil, me abraçou bem, mas a situação sempre continua. É muito difícil conseguir trabalho”, diz outro indígena warao, de 35 anos.

“A ajuda da prefeitura, a única ajuda, é para pagar o aluguel, com R$ 200 todo mês. Para mim, é pouco. O aluguel está R$ 360. Aí eu saio com as crianças na rua para coletar no sinal”, relata.

“Necessitamos de ajuda com comida, e para pagar a outra parte do aluguel. Às vezes, não saímos (às ruas), por causa da situação da pandemia. Nós estamos com medo de sair todos os dias com crianças. Com quatro crianças, não posso. Já faz quase uma semana que estou sem sair de casa.”

Assim como para este pai de quatro filhos, pedir dinheiro nas ruas é a principal fonte de recursos para a maioria dos warao que chega ao Brasil.

Segundo levantamentos feitos pela Acnur e pelo MPF (Ministério Público Federal), esta é a ocupação principal entre esses indígenas no Amazonas (34,8%) e no Pará (41,8%). Em seguida, com menos relevância, estão a venda de artesanato, o comércio e o trabalho braçal.

Duas mulheres warao, sentadas em redes, com bebês no colo e uma criança de frauda entre as redes

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO ACNUR

Legenda da foto,Novo abrigo para os warao no Brasil melhora as condições de recepção para refugiados indígenas

“A prática (dos warao) de pedir dinheiro nas ruas ocorre de forma sistemática desde os anos 1990”, destacam os pesquisadores da Acnur, lembrando que ela teve início quando parte dessa população se deslocou para as cidades fugindo da epidemia de cólera.

A partir dessa experiência, os warao passaram a adotar a coleta de dinheiro nas cidades como uma estratégia frequente, organizando viagens em grupos de mulheres e crianças, que em poucos dias conseguiam valor suficiente para toda a família passar o mês.

“Pedir dinheiro nas ruas é uma estratégia elaborada de forma autônoma pelos warao para garantir sua sobrevivência no contexto urbano, sendo entendida como um trabalho, não como mendicância”, explica a equipe da Acnur.

“Ela não é compreendida como uma prática depreciativa, constrangedora ou indigna, assim como, quando estão em suas comunidades, não é indigno adentrar as matas em busca de frutas, mel e pequenos animais.”

Entre os warao que vivem no Brasil, a coleta também tem outra função fundamental: ajudar os parentes que ficaram na Venezuela.

“Nós, venezuelanos, não viemos todos juntos, parte da família ficou nos caños, nas comunidades”, conta um warao de 24 anos, vivendo em João Pessoa, na Paraíba.

“Ficaram, mas se acabou todo o material para trabalhar na agricultura, para plantar ocumo chino (vegetal semelhante ao inhame), banana, macaxeira… Minha família que vive nos canõs tem sofrido muita fome e também não tem os materiais para trabalhar. Então, eles dizem: ‘Vocês que estão no Brasil precisam nos ajudar’.”

“Por isso é que estamos trabalhando nas ruas, pedindo dinheiro junto com as crianças. Nós temos que trabalhar para ajudá-los.”

A presença das crianças na coleta de dinheiro nas ruas é frequentemente motivo de atritos entre os warao e as autoridades brasileiras, que pensam a infância sob a lógica do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

“Isso precisa ser visto de uma perspectiva diferenciada quando se trata de populações indígenas”, afirma Sebastian Roa, da Acnur. “É preciso entender o contexto histórico e pensar estratégias interculturais. É preciso considerar que as mães dessas crianças estão indo para as ruas porque não têm acesso a uma série de serviços, ao trabalho, têm desafios com a língua.”

“Se já é difícil ser refugiado, imagine ser um refugiado indígena, por isso é preciso pensar em estratégias holísticas e intersetoriais.”

Os warao e a pandemia

O fechamento das fronteiras entre Brasil e Venezuela, devido à pandemia do coronavírus, reduziu o fluxo migratório dos warao para o Brasil no período mais recente, afirma Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Acnur no Brasil.

Com a crise sanitária, também houve uma redução na velocidade de análise dos processos de concessão de refúgio ou de residência temporária pelas autoridades brasileiras, relata o representante. Mas, segundo ele, isso foi normalizado ao longo do tempo.

Indígenas warao usam máscaras de proteção contra o coronavírus

CRÉDITO,DIVULGAÇÃO ACNUR

Legenda da foto,Novo abrigo para os warao no Brasil melhora as condições de recepção para refugiados indígenas

Desde junho de 2019, o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) considera que a Venezuela se encontra em “situação de grave e generalizada violação de direitos humanos”, o que permite o reconhecimento como refugiados de pessoas que deixam o país devido à crise política, econômica e social.

Com isso, o Brasil se tornou o país da América Latina com maior números de venezuelanos com status de refugiados, totalizando cerca de 46 mil pessoas em dezembro de 2020.

Em fevereiro deste ano, mais de 600 indígenas venezuelanos tinham o status de refugiados no país, outros 1,9 mil viviam como residentes temporários e 2,9 mil aguardavam resposta ao pedido de refúgio.

Na pandemia, também foi um desafio equilibrar as práticas de saúde tradicional da cultura warao, com o tratamento biomédico.

“Quando um indígena adoece, o protocolo médico warao estabelece que o primeiro diagnóstico deve partir de um de seus xamãs; o paciente só pode ser encaminhado para o tratamento biomédico após sua liberação”, explica a equipe da Acnur.

“A percepção deles sobre a saúde é completamente diferente”, observa Godinho. “Teve situação em Manaus, por exemplo, em que o xamã teve que fazer uma benzedura para o paciente entrar na clínica e ser tratado para covid”, lembra o porta-voz da Acnur.

Entre janeiro de 2017 e dezembro de 2020, foram registradas 102 mortes entre os warao no Brasil, 21 delas causadas por pneumonia, nove por tuberculose e oito por covid-19 – as doenças do trato respiratório sempre foram a maior fragilidade de saúde dessa comunidade, mesmo antes da pandemia.

Como as demais populações vulneráveis do Brasil, os warao tiveram em 2020 direito a receber o auxílio emergencial de R$ 600 a R$ 1.200. Muitos deles enfrentaram empecilhos para isso, devido à falta de documentos, dificuldades com a língua e pouca familiaridade com a internet.

Mas, vencidas essas barreiras iniciais, o auxílio teve um efeito substancial para essa população, que no geral vive com a baixíssima renda obtida pela coleta nas ruas.

“O auxílio gerou autonomia. Em Manaus, por exemplo, muitos indígenas deixaram os abrigos e começaram a alugar seus próprios espaços”, conta o coordenador da área indígena da Acnur.

A ajuda emergencial também permitiu aos warao enviar recursos mais substanciais para os parentes na Venezuela, além de satisfazer suas necessidades básicas no Brasil.

Agora, destaca Sebastian Rao, o principal desafio é a inclusão dessa comunidade nas estratégias locais de vacinação.

“Há vários Estados que estão vacinando a população em área urbana e os warao entram nesse fluxo”, diz Rao. “Isso é muito positivo, porque é um reconhecimento de que não é só porque um indígena é de outra nacionalidade, que ele não é indígena. Os indígenas warao têm os mesmo direitos que os indígenas brasileiros.”

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Cultos

Igreja Católica está preocupada com avanço evangélico na Amazônia

Pesquisa do Datafolha mostra que há mais evangélicos que católicos no Norte do Brasil

Assembleia de Deus no Norte. (Foto: Arquivo Pessoal / Folha de SP)

Em junho deste ano o Vaticano já demonstrava interesse em aumentar a presença da Igreja Católica na região Amazônica.

O documento emitido naquela época falava sobre a possibilidade de ordenar pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade.

Para isso, a Santa Sé estaria disposta a ordenar homens casados como sacerdotes, algo que não é permitido aos padres.

O interesse do Sínodo da Amazônia, que começou dia 6 e durará até o dia 27 de outubro, é discutir como oferecer aos povos distantes da Amazônia o acesso à eucaristia, como explicou o Dom Mário Antônio da Silva, bispo de Roraima.

Uma pesquisa recente do Datafolha mostra que a região Norte do Brasil tem mais evangélicos que católicos. São 46% de evangélicos e 45% de católicos. A média de todo o país é de 51% da população se assumindo como católica e 32% como evangélica.

Ao longo de todo o encontro episcopal, serão discutidos assuntos de como a Igreja Católica pode se adaptar à realidade amazônica e também serão tratados assuntos comuns aos nove países que formam a região, tanto em questão pastoral, quanto ambiental.

Enquanto as igrejas evangélicas se expandiram na região, a Igreja Católica não conseguiu avançar. Com 27,3 mil padres no país, há poucos que atuam na região Amazônica e vem daí o desejo de usar lideranças locais para atrair a confiança das comunidades.

A antropóloga francesa Véronique Boyer, autora do livro “Expansão Evangélica e Migrações na Amazônia Brasileira”, analisou a situação e entendeu que esse cenário foi traçado pelos pequenos missionários que resolveram atuar na Amazônia.

“Se deve mais à ação de pequenos missionários autoproclamados —que, inicialmente, têm por objetivo fundar a sua igreja— do que a uma ação planejada de igrejas mandando missionários”, declarou ela à Folha de São Paulo.

A antropóloga lembra que os primeiros missionários estrangeiros já atuavam onde padres não iam.

“Não sei se a gente pode falar em uma certa arrogância da igreja, mas se parece um pouco com isto. É claro que padres e bispos estão agora muito preocupados”, declara a pesquisadora.

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Cardeal critica Sínodo da Amazônia: “Justificados pela fé, não pelo ativismo ambiental”

Gerhard Müller criticou vários pontos do documento, entre eles o termo “Mãe Terra”.

Neste domingo (6) uma entrevista do cardeal Gerhard Müller ao jornal Il Foglio trouxe uma série de críticas ao Sínodo da Amazônia, evento que reúne líderes católicos para discutir diversos assuntos sobre a região amazônica.

O religioso declarou que, pelos protagonistas da assembleia, “se compreende facilmente que a agenda é totalmente europeia”, sobretudo a agenda alemã para permitir que leigos tenham direito a votos.

Entre os temas a serem debatidos até o dia 27 deste mês estão o fim do celibato sacerdotal, à ordenação das mulheres, a reforma da moral sexual e a democratização dos poderes na Igreja.

Esses assuntos foram criticados pelo religioso durante a entrevista, pois ele entende que a crise da fé não “se trata de recrutar mais pessoas para administrar” as igrejas e que é necessária “uma preparação espiritual e teológica”, sendo, por isso contrário ao fim do celibato e a ordenação de mulheres.

O religioso declara que o erro está presente também no Instrumentum laboris, o documento base do Sínodo sobre a Amazônia: “um documento que não fala de Revelação, do Verbo encarnado, da Redenção, da Cruz, da Vida eterna”. Ele também critica que o evento exalta as tradições religiosas dos povos indígenas e suas cosmovisões no lugar da Relevação divina.

Müller critica também o tema ambiental como pauta de um evento religioso. “A Igreja é de Jesus Cristo e deve pregar o Evangelho e dar esperança para a vida eterna. Você não pode se tornar o protagonista de nenhuma ideologia, seja a de ‘gênero’ ou a de neopaganismo ambientalista”, declarou.

O uso do termo “Mãe Terra” dentro do “Instrumentum laboris” do Sínodo na Amazônia também foi alvo de críticas por parte do cardeal. Ele entende que a expressão é pagã, pois “a terra vem de Deus e nossa mãe na fé é a Igreja”.

“Somos justificados pela fé, esperança e amor, não pelo ativismo ambiental. É verdade que o cuidado do criado é importante, afinal vivemos em um jardim querido por Deus. Mas este não é o ponto decisivo. O fato é que, para nós, Deus é a coisa mais importante. Jesus deu sua vida pela salvação dos homens, não do planeta”, disse o religioso.