7 janeiro 2022
“Segurar uma tábua que foi escrita há milhares de anos e ser capaz de ler o que ela diz é uma sensação incrível”, diz Christina Tsouparopoulou, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Cambridge (Reino Unido).
“É uma forma de viagem no tempo: ela te catapulta há milhares de anos e te coloca diretamente no lugar de alguém que viveu muitos anos antes de nós”, diz Selena Wisnom, do Departamento de Arqueologia e História Antiga da Universidade de Leicester (Reino Unido).
A forma de escrita mais antiga conhecida é chamada de cuneiforme. Usada pela primeira vez há mais de 5 mil anos, acredita-se que ela seja anterior aos hieróglifos egípcios.
Várias sociedades que viviam na Mesopotâmia usavam o sistema de escrita cuneiforme, incluindo sumérios e acadianos.
Prensadas em argila, as tábuas cuneiformes são incrivelmente duráveis, resistentes ao fogo, mas por milhares de anos ninguém conseguiu traduzi-las.
“Depois que a escrita cuneiforme foi decifrada, muitas coisas inesperadas vieram à tona, mas provavelmente nenhuma que teve um impacto maior do que a descoberta por George Smith, em 1872 da 11ª tabuinha da Epopeia de Gilgamesh, na qual foi encontrada pela primeira vez a história da grande enchente”, diz Irving Finkel, curador do Departamento para o Oriente Médio do Museu Britânico.
1. A Arca de Noé é anterior à Bíblia
“Faça todas as coisas vivas entrarem no barco. O barco que você vai construir.”
Encontrar uma tábua antiga com uma história como a da Arca de Noé escrita centenas de anos antes de a Bíblia destruiu a compreensão de muitos no mundo.
Quando foi descoberta, era algo explosivo. O paralelismo era muito mais do que uma espécie de semelhança geral com um navio, água e animais.
“[A história] estava na mesma ordem e havia muitos pontos próximos que mostravam de forma convincente que a mesma história havia sido contada na Mesopotâmia um milênio antes da data mais antiga em que o texto hebraico provavelmente teria surgido.”
2. O primeiro autor é uma autora
Não era fácil ser mulher na Mesopotâmia, mas as mulheres de famílias ricas eram muito bem tratadas.
A primeira obra literária conhecida em toda a história registrada foi escrita por uma mulher: a sacerdotisa acadiana Enheduanna.
“O caso Enheduanna nos mostra que as mulheres podiam alcançar posições extremamente altas e importantes na religião mesopotâmica”, disse Wisnom.
Além disso, lendo as tabuinhas escritas em cuneiforme, “aprendemos muito sobre a sociedade, sobre crenças, relações entre marido e mulher, sobre transações comerciais”, acrescenta Tsouparopoulou.
Sabemos pelas tabuinhas cuneiformes que as mulheres tinham arbítrio. Temos contratos nos quais elas compravam casas e mantinham o controle de seu dote.
Elas podiam dirigir e administrar negócios por conta própria, desde que estivessem juntos com seus maridos.
3. Contamos o tempo à moda antiga
Se você já se perguntou por que existem 60 segundos em um minuto ou 360 graus em um círculo, é porque os sumérios e acadianos usavam um sistema de numeração que era sexagesimal.
“O que significa que eles tinham uma base de 60 e divisões de 60 e multiplicação por 60, onde tendemos a usar o sistema decimal”, explica Finkel.
“Nossa própria medição do tempo em 60 segundos em um minuto e 60 minutos em uma hora é uma herança direta da tradição acadêmica mesopotâmica”, acrescenta.
“É incrível a quantidade de conceitos que consideramos naturais em nossa sociedade moderna e que podem ser encontrados pela primeira vez na antiga Mesopotâmia.”
“[Por exemplo] todo o conceito de modelos matemáticos, a própria ideia de que os dados podem ser usados para prever coisas que acontecerão no futuro, algo fundamental para toda a ciência moderna”, enfatiza Wisnom.
4. Eles gostavam de escrever tanto quanto nós
Os mesopotâmicos eram escritores de cartas entusiasmados que enviavam mensagens seladas com mercadores e viajantes.
Ao ler essas cartas hoje, você percebe que, de muitas maneiras, isso não mudou muito no mundo.
“Podemos ver que havia fórmulas específicas em sua correspondência”, diz Tsouparopoulou.
“Ao iniciar um e-mail hoje, geralmente temos fórmulas específicas como ‘Espero que você esteja bem’, e eles também tinham isso. Mas quando estavam com raiva, esqueciam dessa convenção estereotipada e começavam a carta de uma forma muito prática.”
Além de escrever sobre estoques de produtos, impostos e receitas nas tábuas, os escritores cuneiformes adoravam fofocar.
“Vimos cartas de mulheres reclamando que os homens não enviavam dinheiro suficiente para casa”, diz Wisnom.
“E outras em que você vê o desejo de estar em pé de igualdade com os vizinhos, que dizem coisas como ‘o vizinho construiu uma ampliação de sua casa, quando teremos dinheiro para construir uma ampliação da nossa casa?'”
“Esses tipos de coisas realmente aparecem e vemos essas pequenas preocupações humanas, aquelas pequenas aspirações, disputas, ciúmes, etc.”
É hora de voltarmos ao cuneiforme?
Ao estudar o passado, aprendemos muito sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos.
Mas os segredos revelados nas tabuas cuneiformes só são conhecidos hoje por causa da durabilidade do barro.
A maneira como registramos as coisas está em constante evolução. O progresso tecnológico significa que as coisas se tornam obsoletas muito rapidamente. Hoje as mensagens que enviamos todos os dias são armazenadas na nuvem.
Qual é a probabilidade de alguém ser capaz de ler isso daqui a 20 anos ou daqui a milhares de anos?
“Há um projeto na Áustria que está inscrevendo mil dos livros mais importantes de nossa era em placas de cerâmica”, diz Wisnom.
“Parece que fechamos o círculo: desde escrever no barro no início da história a voltar a escrever no barro, embora de uma forma diferente. Para preservar nossas informações agora.”
Existem muitas iniciativas que tentam evitar a perda de dados digitais.
Será que, apesar de toda a tecnologia incrível ao nosso alcance, os métodos antigos de registro de informações são a melhor maneira de preservar nossos segredos para as gerações vindouras?
Este artigo é uma adaptação do vídeo da BBC Ideas “Os antigos segredos revelados por tabuinhas decifradas”, feito com o consultor acadêmico Rodrigo Hernaiz-Gomez, professor de Línguas e Lingüística, The Open University