Conflito começou em 2011 e envolve interesses de várias potências mundiais
Síria, uma guerra de interesses
Embora a guerra na Síria esteja ocorrendo desde 2011, só passou a receber uma cobertura mais ampla da mídia agora, que a UNICEF fez denúncias sobre o massacre de crianças, que já deixou cerca de mil delas mortas desde o início do ano.
Um dos motivos pelos quais ela era amplamente ignorada ou subreportada tem a ver com a questão religiosa. A maioria das milícias que lutam contra o governo sírio são islâmicas e recebem apoio de diferentes países muçulmanos, que as sustentam e armam.
O presidente Bashar al-Assad sucedeu seu pai, Hafez, em 2000. Considerado mais fraco politicamente e com o país com um alto nível de desemprego, denúncias de corrupção em larga escala e falta de liberdade política, começaram a surgir movimentos rebeldes, fortemente reprimidos por governo em Damasco.
Primavera Árabe
Nessa mesma época começavam os movimentos pedindo mais liberdade no Oriente Médio, a chamada Primavera Árabe – manifestações populares que derrubaram governos na Líbia e no Egito.
A diferença é que na Síria, Assad ordenou que as forças de segurança abrissem fogo contra os ativistas – matando vários deles. As tensões se elevaram, mais gente saiu às ruas e a violência escalonou. Em julho de 2011, centenas de milhares ocupavam as ruas em todo o país, exigindo a saída do presidente, considerado um ditador.
Os grupos antigoverno começaram a pegar em armas, primeiramente no interior do país. Assad tentou “esmagar” o que chamava de “terrorismo apoiado por estrangeiros” e tentou restaurar o controle do Estado. Porém as milícias rebeldes se fortaleceram, tomando o controle de cidades e vilarejos.
Em meados de 2012, os combates já tomavam à capital, e Aleppo, segunda maior cidade do país.
O aspecto religioso islâmico tinha um peso determinante na guerra que opunha a maioria sunita do país e os xiitas alauítas, ramo ao qual pertence o presidente.
Guerra Santa
Somente em junho de 2013, as Nações Unidas começaram a falar sobre o assunto, quando o saldo de mortos já chegava a 90 mil pessoas. A maioria das milícias são formadas por jihadistas – defensores da “guerra santa” islâmica.
O grupo que mais se destacava era o autointitulado Estado Islâmico da Síria e do Iraque (ISIS na sigla original) e a Frente Nusra, afiliada à al-Qaeda.
Os soldados do ISIS, que decretou um califado em 2014 e controlava cerca de um terço do território sírio, passaram a reunir também jihadistas estrangeiros, vindos da Europa, dos EUA e até da Austrália. Apesar de negar, seu grande apoiador então era a Turquia, que comprava o petróleo vendido por eles por preços abaixo do mercado.
O EI passou a publicar vídeo brutais de execuções e o foco da mídia mundial passou a ser a região controlada pelo grupo, que incluía parte do Iraque, país também fragmentado por guerras internas desde a retirada da maioria das tropas americanas, que invadiram o país em 2003 e causaram a queda do regime de Saddam Hussein.
Enquanto o Estado Islâmico massacrava sobretudo as minorias (cristãos e yazidis), o governo da Síria continuava focado em manter o controle dos arredores de Damasco. Na região controla pelo EI seu maior opositor era o Exército curdo, um grupo étnico que vivia perto da fronteira com o Iraque, onde mantinham um estado semiautônomo.
EUA-Arábia Saudita e Rússia-Irã
Os Estados Unidos, ainda no governo Obama, apoiavam os curdos e a Frente Nusra (considerada por eles ‘moderada’) com armamentos e até bombardeios aéreos.
A Rússia possui grande interesse comercial no petróleo da Síria e também estratégico. Em 2015 já havia transformado o porto de Tartus, no mar Mediterrâneo, em uma base naval. No mesmo ano começou uma campanha aérea, com o fim de “estabilizar” o governo sírio.
A intervenção russa possibilitou vitórias significativas das forças sírias e fortaleceu as investidas do Irã e do Hezbollah, grupo terrorista libanês.
Formaram-se assim alianças com interesses distintos. Os Estados Unidos exigiam que Assad deixasse o poder como condição para a paz. Eles eram apoiados por forças da Arábia Saudita, aliados históricos do ramo islâmico da família que governa a Síria.
Do outro lado, Rússia, Irã e Líbano (Hezbollah) davam cobertura às tropas leias ao governo, dominado sobretudo a região ao sul de Damasco, até as colinas de Golan, na fronteira com Israel.
Os interesses russos são econômicos, enquanto o Irã, país de maioria xiita, e o Líbano possuem afinidade religiosa. Além disso, a Síria serve como um corredor para o envio armamentos de Teerã para o Líbano.
Ninguém investiu nessa guerra mais que os iranianos, calculado em bilhões de dólares, eles gastaram com armamento, tropas, crédito e construção de estruturas militares.
O papel mais ‘obscuro’ nesse processo é o da Turquia. Oficialmente aliado dos EUA, o governo de Erdogan entrou em conflito com as tropas americanas, a quem critica por darem cobertura às forças curdas, que por sua vez sustem os rebeldes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).
O apoio militar, financeiro e político das potencias estrangeiras para o governo e para a oposição contribuem diretamente para que os enfrentamentos não cessem. Na prática, a Síria se transformou no maior campo do que é chamado “guerra por procuração”.
A chegada de Trump ao governo ainda não alterou significativamente o conflito nem na Síria nem no Iêmen, onde também ocorre essa “guerra por procuração”, opondo EUA-Arábia Saudita e Rússia-Irã.
O saldo desse complexo jogo de interesses resultou no maior conflito armado de nossos dias.
Os números
Apesar de não serem totalmente confiáveis os números, segundo o Centro Sírio para Pesquisa de Políticas, já morreram cerca de 500 mil pessoas, com mais de 5 milhões de sírios deslocados de suas casas ou fugindo para os países vizinhos (Líbano, Jordânia e Turquia) como refugiados. Cerca de 10% desses refugiados têm conseguido abrigo em alguns países da Europa e até no Brasil.
A população da Síria, 23 milhões antes do conflito, hoje está reduzida à metade. Dentre os cerca de 13,5 milhões de habitantes, 6 milhões são crianças.
Segundo a ONU são necessários US$ 3,2 bilhões para prover ajuda humanitária a todos. Cerca de 70% da população não possui acesso a água potável, uma em cada três pessoas não consegue ter alimentação básica diária e um em cada cinco indivíduos vive em extrema pobreza. Com informações de BBC