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Quase 40% dos católicos avaliam deixar a igreja após casos de abuso sexual

Padre com crianças
Padre com crianças

Mais de um terço dos católicos moradores dos Estados Unidos (37%) consideram abandonar a igreja após a série de escândalos de abusos sexuais relatados por padres, de acordo com um estudo feito pelo instituto de pesquisa norte-americano Gallup.

O resultado atual é 15 pontos percentuais superior ao registrado em 2002, quando as notícias do abuso levavam 22% dos fiéis a questionar a permanência na igreja.

A pesquisa surge após a condenação do cardeal australiano George Pell, que chegou a ser o terceiro mais importante da hierarquia do Vaticano. Ele foi condenado na última terça-feira (12) a seis anos de prisão por cinco crimes de abuso sexual contra dois menores, cometidos há mais de 20 anos.

O analista do instituto de pesquisa, Jeffrey M. Jones, afirma que a condenação do cardeal tem afetado mais os sentimentos dos católicos norte-americanos do que a descoberta do jornal The Boston Globe, que revelou, em 2002, o abuso generalizado de integrantes da igreja católica na região de Massachusetts. O caso é tema central do filme Spotlight: Segredos Reveladosvencedor do Oscar de Melhor Filme em 2016.

O levantamento aponta ainda que os católicos menos assíduos eram os mais propensos a reconsiderar sua afiliação à igreja (46%). Dos católicos que comparecem mensalmente às missas, 37% afirmam que questionaram se deveriam seguir na doutrina.

No geral, 62% dos católicos pesquisados em 2019 disseram que não questionaram seu compromisso. Na avaliação de Jones, deve ser notado que só porque alguém questiona se deve permanecer na igreja não significa que ela decidirá abandoná-la.

“Muitos católicos podem considerar deixar a igreja, mas acabam decidindo não fazer isso. Eles também podem não ter intenção de ir embora, mas simplesmente responder a essa pergunta como uma forma de expressar sua frustração com o modo como a igreja lidou com o problema”, avalia Jones.

A pesquisa aponta ainda que mais de 40% dos católicos norte-americanos entrevistados disseram ter “muita fé” no Papa Francisco e nos padres de sua igreja. Ao mesmo tempo, apenas 20% disseram ter a mesma quantidade de fé em bispos dos EUA e outros líderes católicos nos EUA e padres católicos no país.

O estudo da Gallup foi realizado a partir de entrevistas com 581 católicos norte-americanos entre os dias 21 e 27 de janeiro e 12 a 28 de fevereiro, época em que o papa convocou líderes de igrejas de todo o mundo para uma cúpula de quatro dias sobre abuso sexual.

Fonte: R7

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Mulher que ajudou a desmascarar João de Deus comete suicídio

Sabrina Bittencourt (Foto: Arquivo pessoal)
Sabrina Bittencourt (Foto: Arquivo pessoal)

Ativista social e uma das mulheres que ajudou a desmascarar abusos sexuais de João de Deus e Prem Baba (conhecido como guru do amor e acusado de abuso sexual de suas discípulas), Sabrina Bittencourt, 38, teria cometido suicídio no sábado (02/02), segundo ativistas e fontes próximas à vítima.

Uma nota de falecimento comunicada à imprensa assinada por Maria do Carmo Santos (presidente da ONG Vitimas Unidas, com a qual Sabrina trabalhava) na manhã deste domingo (03/02), confirmava a morte da mulher.

Procurado pela equipe de Marie Claire, o Consulado Brasileiro em Barcelona afirmou que não poderia dar informações sobre nenhum residente brasileiro sem prévia autorização dos familiares. As autoridades espanholas até agora não confirmaram o suicídio ou a morte de Bittencourt.

“O grupo Vítimas Unidas comunica com pesar o falecimento de Sabrina de Campos Bittencourt ocorrido por volta das 21h deste sábado, 02 de fevereiro, na cidade de Barcelona, na Espanha, onde vivia. A ativista cometeu suicídio e deixou uma carta de despedida relatando os porquês de tirar sua própria vida. Pedimos a todos que não tentem entrar em contato com nenhum integrante da família, preservando-os de perguntas que sejam dolorosas neste momento tão difícil. Dois dos três filhos de Sabrina ainda não sabem do ocorrido e o pai, Rafael Velasco, está tentando protege-los. A luta de Sabrina jamais será esquecida e continuaremos, com a mesma garra, defendendo as minorias, principalmente as mulheres que são vítimas diárias do machismo. Agradeço o apoio de todos”, dizia a nota divulgada e assinada por Maria do Carmo Santos.

No sábado (02/02) às 20h05, Sabrina, que é Doutora Honoris Causa por seu trabalho humanitário pela UCEM – Universidad del Centro, no México, escreveu post em sua conta no Facebook em que fala sobre sua vida, a luta pelas mulheres e minorias e que logo se uniria à Marielle Franco [vereadora carioca assassinada no Rio de Janeiro em março do ano passado]. “Marielle me uno a ti. Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos.”. Sabrina, que morava em Barcelona, deixa três filhos.

Ativismo

De família mórmon, Sabrina foi abusada desde os 4 anos por integrantes da igreja frequentada pelos pais e avós. Aos 16, ficou grávida de um dos estupradores e abortou. Bittencourt se dedicou à militância por vítimas de abuso por  líderes religiosos, dentre eles Prem Baba e João de Deus.

Ela é uma das criadoras da plataforma Coame, sigla para Combate ao Abuso no Meio Espiritual, ferramenta que concentra denúncias de violações sexuais cometidas por padres, pastores, gurus e congêneres. Sabrina ajudou, principalmente, as vítimas de abuso sexual de João de Deus, investigando as acusações junto à imprensa. A ativista também auxiliou a filha do próprio médium, Dalva Teixeira, na denúncia contra o pai por abuso.

Em relato em primeira pessoa feito em dezembro de 2018 à Marie Claire, Sabrina — que dizia sofrer de câncer linfático — contou sobre a vida de abusos e como se tornou uma das principais vozes e forças de apoio a vítimas de violência sexual, principalmente dentro de grupos religiosos. Alvo de ameaças de morte, ela vivia fora do Brasil e se mudava frenquentemente.

Caso João de Deus

Sabrina fazia parte do grupo Somos Muitas, que no ano passado, divulgou uma série de acusações de abuso sexual que teriam sido praticados pelo médium João Teixeira de Faria, 76, mais conhecido como João de Deus, em Abadiânia, interior de Goiás. Com as informações coletadas pelo grupo e com a ajuda de Sabrina, o MP do estado instaurou a própria força-tarefa e denunciou o líder espiritual, com uma prisão sendo decretada no dia 16 de dezembro.

Em janeiro, Sabrina também apresentou outra denúncia ao Ministério Público sobre o suposto envolvimento de João de Deus em casos de tráfico internacional de bebês e escravização de mulheres.

A seguir, leia na íntegra o post de Sabrina postado no Facebook na noite de sábado (02/02):

“Marielle me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos! Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos. VOCÊS TERÃO MILHARES DE MÃES NO MUNDO INTEIRO. Minhas irmãs e irmãos na dor e no amor, cuidem deles por mim… ❤️Eu sempre disse que era só uma pequena fagulha. Nada mais. Só pó de estrelas como todos. USEM A SUA PRÓPRIA VOZ. A SUA PRÓPRIA VONTADE. TOMEM AS RÉDEAS DE SUAS PRÓPRIAS VIDAS E ABRAM A BOCA, NÃO TENHAM VERGONHA! ELES É QUEM PRECISAM TER VERGONHA. Não aguento mais. Todas as provas, evidências, sistemas de apoio, redes organizadas e sobretudo, meu legado e passagem por aqui está entregue ou chegará às mãos corretas. As REDES DE APOIO AOS BRASILEIR@S FORAM CRIAD@S E SE EXPANDIRÃO NA VELOCIDADE DA LUZ! Não se desesperem. Dessa vida só levamos o mais bonito e o aprendido. Paulo Pavesi, eu sinceramente sinto muito pela morte do seu filho. Tenha certeza, que se eu soubesse da sua história na época, implicaria minha vida e segurança como fiz com centenas de pessoas. Damares, eu sei que você não teve tratamento psicológico quando deveria e teve sequelas, servindo de marionete neste sistema de merda que te cooptou, acolheu e com o qual você se sente em dívida o resto da sua vida. Não tenho dúvidas que você amou e cuidou da sua “Lulu” como gostaria de ter sido cuidada e protegida na sua infância, mas ela nao é uma bonequinha bonita que você poderia roubar e sair correndo… Giulio Sa Ferrari, eu te considerei um irmão e você sabia de todas as minhas rotas de fuga… eu vi em você a pureza de um menino que nunca foi notado por uma sociedade neurotípica que não entendia os neuroatípicos, mas reputação é algo que se constrói e não é de um dia ao outro. Gabriela Manssur, muito obrigada por me fazer ter esperança de que elas serão ouvidas e atendidas em suas necessidades. João de Deus, Prem Baba, Gê Marques, Ananda Joy, Edir Macedo, Marcos Feliciano, DeRose Pai, DeRose filho, todos os padres, pastores, bispos, budistas, espíritas, hindús, umbandistas, mórmons, batistas, metodistas, judeus, mulçumanos, sufis, taoístas, meus familiares, Marcelo Gayger, Jorge Berenguer, eu desconheço a sua infância e a sua criação pelo mundo, mas sei no meu íntimo que TODO MENINO NASCEU PURO e foi abusado, corrompido, machucado, moldado, castrado, calado, forçado a fazer coisas que não queria, até se converter talvez, cada um à sua maneira, em tiranos manipuladores (em maior ou menor grau) que ao não controlar os próprios impulsos, tentam controlar a quem consideram mais frágil e assim praticam estupros, pedofilia, adicções diversas… Eu sei, eu sinto, eu vi. Mas ainda assim, preferi SEMPRE ficar do lado mais frágil nesta breve existência: mulheres, crianças, idosos, jovens, povos originários, afrodescendentes, refugiados, ciganos, imigrantes, migrantes, pessoas com deficiência, gays, pobres, lascados, fudidos, rebeldes e incompreendidos… Essa vida é uma ilusão e um jogo de arquétipos do bem e do mal, de dualidades… desde que o mundo é mundo. Vivo num outro tempo desde que nasci e sempre senti que vivia num mundo praticamente medieval. Volto pro vazio e deixo minha essência em PAZ. Aos meus amigos, amadas e amantes, nos encontraremos um dia! Sintam meu amor incondicional através do tempo e do espaço. SIM e FIM.”

Fonte: Marie Claire

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Líder religioso é investigado por abuso sexual em rituais com drogas

Mulher abusada por líder religioso da igreja Reino do Sol, em São Paulo, que mistura a doutrina do Santo Daime com umbanda.Mulher abusada por líder religioso da igreja Reino do Sol, em São Paulo, que mistura a doutrina do Santo Daime com umbanda.
Juliana Gragnani
Da BBC News Brasil, em São Paulo

A polícia de São Paulo investiga mais um líder religioso acusado de abusos sexuais. Três supostas vítimas depuseram ao Ministério Público de São Paulo em 2016 sobre Antônio Alves Marques Júnior, conhecido como Gê Marques, de 62 anos.

Ele é dirigente da igreja Reino do Sol, em São Paulo. O grupo religioso, hoje com sede em Mairiporã, na Grande São Paulo, mistura a doutrina do Santo Daime com umbanda.

O Ministério Público pediu a abertura de um inquérito, que foi instaurado no 14º DP da capital, em 2017, e está sob sigilo. A promotora e o delegado responsáveis não quiseram dar entrevista. Segundo o advogado de Gê Marques, o líder religioso ainda não foi intimado a depor.

Além das três mulheres, cujos depoimentos fazem parte da investigação, outras 12 afirmaram à BBC News Brasil que teriam sido vítimas de abuso sexual sem, no entanto, terem levado denúncias à Justiça.

Os supostos crimes teriam acontecido entre 2005 e 2015. Teriam ocorrido, segundo o relato das entrevistadas, em diferentes lugares: na sede da igreja, na casa do líder religioso e em motéis para onde algumas mulheres que faziam parte de rituais religiosos relataram ter sido levadas sem aviso prévio.

A BBC News Brasil entrevistou 11 mulheres, incluindo as três que depuseram ao Ministério Público, e recebeu relatos escritos de mais quatro. Todos os nomes nessa reportagem são fictícios.

A reportagem não trará detalhes de todas as alegações que foram ouvidas nem publicará na íntegra as entrevistas e depoimentos recebidos por escrito. Apenas três casos, que trazem elementos comuns à maioria das denúncias, serão reportados.

Entre as histórias narradas estão supostos casos de assédio sexual e até de supostos estupros. A maioria das mulheres acusa Marques de ter praticado os crimes enquanto elas estavam sob efeito de ayahuasca, uma bebida alucinógena, dentro de um contexto religioso, ou de drogas como LSD e ecstasy.

Gê Marques nega as acusações. Por telefone, ele se recusou a dar entrevista e enviou o contato de seu advogado. Para dar ampla chance de resposta, a BBC News Brasil listou em e-mail o conteúdo dos relatos.

Por meio de nota, seu advogado, Luís Eduardo Kuntz, afirmou que, caso essa reportagem fosse veiculada “nos termos da narrativa e perguntas encaminhadas”, “estará calcada em distorções absolutamente equivocadas e de má-fé, construindo cenários que nunca ocorreram” e que “impressiona a desfaçatez e leviandade como os relatos foram construídos, alterando completamente a verdade, para enxovalhar, com o máximo de dano possível, sua honra e reputação”.

Ainda segundo a nota do advogado de Gê Marques, “foram mantidas relações de amizade e proximidade com todas (sic) os frequentadores do Reino do Sol, relações estas sempre pautadas pelo respeito e urbanidade”. “Os fatos, se necessário e oportunamente, serão completamente esclarecidos perante as autoridades competentes.”

Afirmou, por fim, que “todos os envolvidos nesta grave e irresponsável acusação serão oportunamente responsabilizados civil e criminalmente”. Segundo o advogado, Marques está “à disposição” para depor no inquérito, do qual está ciente.

Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a Polícia Civil “encaminhou o inquérito de violação sexual mediante fraude à Justiça, solicitando prorrogação de prazo”. “Foi expedida carta precatória para ouvir o suspeito e diligências estão em andamento para localizá-lo. Vítimas foram ouvidas e a autoridade policial aguarda o retorno do inquérito para prosseguir com as investigações.”

‘UMBANDAIME’

O Reino do Sol foi fundado por Gê Marques em 2002. No auge da popularidade, dizem os ex-membros, a igreja chegou a ter um fluxo de 300 pessoas que iam participar de trabalhos espirituais e rituais. Membros fixos, como agora, eram ao redor de 100, que pagavam uma contribuição mensal de cerca de R$ 100.

Os membros têm um perfil predominantemente jovem, de classe média, muitos deles artistas e intelectuais moradores da zona oeste de São Paulo.

“Umbandaime”, religião do Reino do Sol, é uma mistura entre doutrinas: a umbanda já é ela própria uma mistura entre religiões africanas e cristãs, e o Santo Daime, fundado por um seringueiro na região amazônica nas primeiras décadas do século 20, bebe nas tradições espírita e xamânica, de consumo da ayahuasca.

O ritual, portanto, mescla elementos das duas religiões, e funciona resumidamente assim: os participantes ingerem ayahuasca ou, como dizem, consagram o Daime e, vestindo roupas brancas em fileiras ao redor de uma mesa em forma de estrela de seis pontas, cantam e fazem orações.

Então, sob influência da ayahuasca – permitida no Brasil em contextos religiosos e sem fins lucrativos – médiuns incorporam entidades da umbanda. O ritual costuma começar à noite e se estender até a madrugada.

O Reino do Sol é uma igreja independente e não faz parte de outros grupos religiosos maiores.

Gê Marques é referência em umbandaime. Formado em jornalismo pela USP, fez mestrado em Ciências da Religião na PUC de São Paulo justamente com foco na inserção da umbanda no Santo Daime. Conduz rituais também fora do Brasil.

As mulheres e outros ex-integrantes do Reino do Sol, entrevistados pela BBC News Brasil, são unânimes ao descrevê-lo: é, segundo dizem, extremamente inteligente e articulado, com grande capacidade de oratória, admirado pelos frequentadores e com muito conhecimento sobre umbanda e daime.

OS RELATOS

A acusação de Helena é uma das 15 relatadas à BBC News Brasil. Ela conta ter ido para uma sessão de descarrego em 2005. O ritual para livrá-la de energias ruins aconteceria, segundo seu relato, numa sala pequena, com duas cadeiras e uma maca, sem ervas, só com Gê Marques, sem a presença de outros médiuns, o que, segundo ela, seria incomum.

Marques ofereceu ayahuasca, diz ela. Quando a bebida “bateu”, ela teria começado a chorar. Ele tentou acalmá-la, fez uma massagem e propôs que cantassem, diz.

“Mas até aí, para mim, estava tudo dentro do que poderia ser normal. Eu estava com o dirigente espiritual que eu admirava, confiava. Estava entregue, buscando minha cura, buscando ajuda”, conta. A sessão de descarrego havia sido marcada dias antes porque o próprio médium, enquanto estaria incorporando uma entidade, havia lhe dito que ela precisava daquilo, diz.

Então, conta, ele teria proposto uma “dinâmica energética” na salinha, comum em outros rituais seus. Um deveria colocar a mão na parte do corpo do outro que estava “precisando de energia”.

Helena relata que colocou a mão no coração dele. Ela diz que Marques, então, teria movido a mão dela e colocado em seu órgão genital. Helena conta que se assustou, recolheu imediatamente sua mão e pediu para deixar a sala, que ela disse estar trancada. “Ele pediu para eu me acalmar e me deitar ao lado dele”, o que ela diz ter feito e, depois de um tempo chorando, insistiu para sair e ir embora.

Helena diz ter se convencido de teria ocorrido ali um incidente isolado, e continuou a frequentar o grupo religioso, um pouco mais ressabiada, mas ainda sem deixar de admirar o líder.

Em 2015 diz ter descoberto, no entanto, que outras mulheres relatavam experiências semelhantes.

“Como imaginava que seu ‘deslize’ havia acontecido apenas comigo, me deixei convencer que falar poderia ser mais destrutivo para todos do que me calar”, disse uma das mulheres.

“Ele fazia aparecer que aquilo tinha acontecido por acaso. Uma coisa é convidar de maneira explícita, mas, não, ele vai te conduzindo, te deixando encurralada. Se ele tivesse tido a coragem de deixar claras as suas intenções, eu teria tido a chance de escolher se queria ou não passar por aquilo. O método dele é manipulador”, disse outra suposta vítima.

“Naqueles flashes de segundos, você fica meio que paralisada. Pensa: ‘será que isso é uma prática energética?’ Hoje, fico indignada comigo mesma por tamanha ingenuidade. Só percebi anos depois que não houve propósito espiritual nenhum e que fui abusada”, relatou outra das supostas vítimas.

MASSAGENS E TERAPIAS

As “vivências espirituais” no Reino do Sol iam além da prática tradicional do Daime, diz uma ex-participante, e envolviam massagens, alongamentos, exercícios corporais parecidos com aula de teatro ou Tai Chi Chuan, às vezes em uma casa alugada onde havia piscina.

Segundo as mulheres que conversaram com a reportagem, alguns convites para massagens terminaram em abuso. É o que alega, por exemplo, Roberta. Em seu caso, ela disse que aconteceu sem uso de ayahuasca ou algum outro psicoativo.

Ela diz que Marques a convidou para um “atendimento” em sua casa depois de uma sessão terapêutica na Escola da Rainha, uma casa de terapias do Reino do Sol que funcionou até 2008 na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo.

“Ele me levou até o quarto. Ali já estava preparado no chão do quarto uma canga com velas, pedras e um vidro de óleo.” No começo, diz ela, foi mesmo uma massagem. Ela diz que ficou “por muito tempo acreditando que aquilo ali era reiki [tipo de massagem ‘energética’].”

No meio da massagem, conta, ele começou a tirar sua roupa e pediu que ela dissesse o nome de um animal e de uma cor. “Enquanto ele estava me massageando até de frente, sem sutiã, eu ainda estava em dúvida: ‘O que será que está acontecendo aqui? Será que é normal?’ Eu era nova, tinha 20 anos. Tinha aquela dúvida de ser imatura, de não querer parecer inexperiente, desinformada. E tinha muita confiança nele.” Roberta conta ter interrompido a sessão após Marques tirar a calça e se deitar sobre ela.

“Que essa reflexão sobre o que significa o consentimento seja feita em maior escala e profundidade. Porque não existe consentimento quando um homem utiliza a posição poder que ocupa, o momento de fragilidade da mulher à procura de apoio espiritual e o uso de drogas para cometer abuso sexual”, refletiu uma das supostas vítimas.

“Não frequento mais nenhuma igreja. Fala para mim que é mestre religioso, não quero nem saber”, disse outra mulher.

CRISE NA IGREJA

Segundo as mulheres, o poder exercido por Marques e a admiração que sentiam por ele fizeram com que não se dessem conta de que teriam sido abusadas dentro de circunstâncias supostamente similares. Elas dizem que isso ficou evidente para elas quando, naquele ano, pelo menos três alegações, que posteriormente chegariam ao Ministério Público, vieram à tona.

Entre eles, o de Carolina. Ela entrou na igreja com a família quando tinha 15 anos em 2006, orientada por seu padrasto.

Ela disse que Marques teria oferecido sessões gratuitas de terapia em sua própria casa para ela, com 16 anos na época.

Ao final da segunda sessão, ela diz, ele se aproximou dela no corredor. “Antes de abrir a porta, me beijou.” “Foi uma coisa muito ruim. Lembro de entrar no elevador pasma, totalmente confusa, e pensar: ‘nossa, será que ele está gostando de mim?’ Escondi da minha mãe, senti muita vergonha”, disse.

Carolina afirma ter sido abusada por ele em outras situações, incluindo uma em que ocorreu, após uma massagem, uma relação sexual com a qual ela diz não ter tido capacidade de consentir por estar sob efeito efeito de álcool e pela ascendência que ele exercia sobre a adolescente, então, com 17 anos.

“Para mim foi difícil porque ele não apontou arma nenhuma para ela. Como é que fala que foi abuso sexual? Ele poderia ser o avô dela. Depois entendi como ele usava o lugar de poder dele. As meninas eram enganadas, achavam que tinham feito algo de errado. Até hoje ela sofre com isso”, disse à BBC News Brasil o padrasto de Carolina.

Confrontado pelas alegações de alguns membros do grupo, o dirigente se afastou da igreja por um período aproximado de nove meses entre dezembro de 2015 e setembro de 2016. Em 1º de dezembro de 2015 ele mandou o seguinte email: “Aos meus irmãos do Reino do Sol, com luto na alma lhes dirijo estas palavras. Essa Casa viu seus alicerces serem abalados, e disso sou o único responsável. Tanta dor provocou a minha ignorância, e disso espero um dia me perdoar. Antes de tudo espero que estes tantos irmãos a quem faltei com a minha luz um dia possam me perdoar. A todas as mulheres, aos seus companheiros e familiares”.

“Vou atrás de entender as profundezas de meu ser, correr atrás de clarear os vícios da minha alma e meus enganos, garimpar a minha cura aonde no fundo da alma há o que iluminar. Vou buscar ajuda onde a Luz me apontar. Estou profundamente abalado e envergonhado. (…) Parto em busca de minha regeneração, procurando não perder a fé de que mesmo ao menor dos seres sejam concedidos o perdão (…).”

Procurado para comentar o e-mail, o advogado de Marques, Kuntz, diz que “os pedidos de perdão estão devidamente esclarecidos no contexto de e-mail antigo”. Ele se refere a um enviado por Marques antes disso, em 22 de novembro daquele ano, em que ele também comentava os relatos que já circulavam no Reino do Sol.

“Seja como for, sei que o que o escuro promove hoje tem como foco derrubar o Reino do Sol, através da minha pessoa”, diz o e-mail. Ele diz ter sido “obrigado a reavaliar” seu lugar de dirigente “de uma coletividade espiritual, que mesmo se pretendendo libertária, está imersa também nas sombras moralistas de nossa cultura”.

“Tenho vida afetiva e sexual normal. Nunca fiz papel de guru acético, ou de celibatário. Mas tentar me imputar a pecha de mal intencionado é infame. De mim a mais absoluta certeza de que, mesmo com meus enganos, sempre respeitei profundamente as mulheres (…) Mas o que se busca hoje é me fixar chavões da sombra moral, como assediador, abusador – com que a massa de linchadores se compraz.”

Para seu advogado, os pedidos de perdão são “o retrato de uma pessoa responsável e fiel à sua coletividade”. Nos e-mails trocados naquela época, outros membros defenderam o dirigente espiritual.

Marques voltou em setembro de 2016 e permanecia até dezembro à frente do espaço em Mairiporã. No final de 2018, depois que a BBC News Brasil entrou em contato com Marques e enviou perguntas a seu advogado, o líder espiritual anunciou que se afastaria novamente do Reino do Sol, segundo integrantes da igreja. Procurado para comentar, seu advogado disse não estar ciente de tal decisão.

Uma participante atual do Reino do Sol que não quis ser identificada o defende: “Não tenho nada contra ele. É minha casa do coração. Aquela situação já está resolvida”. Outra diz que o que teria acontecido “não tira o crédito do trabalho que ele fez por muitos anos”, e que Marques “sempre foi muito competente”, um dos poucos sabiam “muito bem administrar” ayahuasca aos frequentadores da casa. “É uma das pessoas que mais cuidado tem, é um cara superbacana.”

Fonte: BBC Brasil